segunda-feira, outubro 11, 2004

O Rei

Era um lugarejo distante, poucos lá iam, mas todos de lá sabiam: aquele pedaço de terra era amaldiçoado. Bom, na verdade, fazia mais de um século que nada de sobrenatural ali havia, mas a fama continuaria até o ano 2000, ou quando nenhum sobrevivente vizinho pudesse contar essa história.

A primeira maldição aconteceu no reinado de Luís III por um misterioso bruxo de barba grande e cabelos compridos, e ninguém acreditava que aconteceria novamente, pois fazia muito tempo. Já estamos em Luiz VII (sim, houve um erro do escrivão no nascimento de Luiz IV, mas já haviam remediado a situação. Guilhotina.), e a monarquia já havia sido derrubada há décadas. Um jovem, e muito competente, presidente agora governava o pequeno lugar, pela primeira vez houve democracia e todos estavam satisfeitíssimos com aquilo.

O Estado era um vilarejo de nove quadras e um castelo. Nesse castelo, vivia Luiz VII, um rei que não tinha mais nenhum súdito, nenhuma rainha e, muito menos, uma princesa. Ele não podia andar com sua carruagem, pois os cavalos perderam as estribeiras. Ele não podia mais se divertir com o bobo, pois esse achou outro rei que lhe queira. Não podia dormir na rede, porque no reinado não havia parede. Dizem que se alimenta apenas das traças de seus lençóis, mas isso é lenda do povo... O mais estranho nesse rei era sua forma de falar. Ele falava em versos livres, mas nunca na vida conseguiu completar a rima de uma quadrinha.

- É, eu sou um rei, realmente, muito sozinho,
Mas não preciso de ninguém.
Enquanto os outros suplicam por carinho,
Eu me contento com a tevê.


Todos do lugarejo caçoavam do jeito imbecil de ser do rei. Mas ele não se importava, sabia que só o rei é real. Visitava seu povo regularmente, ouvia piadinhas por causa da sua coroa e do seu ar majestoso, resolvia retornar ao trono e descansava.

- Sei muito bem que em qualquer emergência
É o rei que resolve
Por isso, não contento com minha ausência,
Sempre estarei aqui.


Mariu era um menino de doze anos que muito gostava de rir da insanidade do rei altivo, estava sendo alfabetizado graças ao plano de incentivo à escola proposto pelo novo presidente participativo. Sua meta era diminuir o número de analfabetos e, depois, aumentar a taxa de impostos, já que todos teriam condições de sobressair-se. O lugar estava felicíssimo com aquilo, estavam até pensando em realizar essa vitória democrática a cada quatro anos, assim surgiriam novas propostas e o povo só teria a ganhar.

Mas o que aconteceu é que o misterioso bruxo de barba grande e cabelos compridos voltou. Junto com ele, trouxe a maldita depressão do lugar. A maldição era um eterno anoitecer, a fome era perpétua e a guerra era pelo pão vosso de cada dia que caia do céu, duro e mandado pelo Diabo. Junto dessa maldição, uma charada que, resolvida, salvaria todos daquele inferno: “O que é, o que é, o rei que não morre, nunca envelhece e é vitalício?”. Sabiam agora que além de desgraçado, o mago também era debochado.

O povo estava apático. Suas vidas não eram mais as mesmas. E sobre a resposta desse enigma simpático, estavam todos unidos no centro da cidade.

- A resposta é “abelha”! É lógico, só pode ser “abelha”...

- Mas “abelha”? Por que seria “abelha”, Ênio?

- As abelhas não têm rainhas? Alguém já viu uma abelha rainha morta? Vamos lá dizer ao mago, é certo que é abelha...

Todos se olharam, acharam que a opinião dele deveria ser respeitada. Afinal, o avô do Ênio era conselheiro do Rei Luís III na época da antiga maldição...

Mariu, sabendo disso, recorreu à raça que anteriormente salvaria seu povo, os reis. Chegando lá, viu seu digníssimo presidente também pedindo a mesma informação com o louco senhor de coroa.

- Que queres tu, menino plebeu?
Não se cansaste de rir de mim?
Qual graça que ainda não cometeu?
Essa é uma reunião de chefes de Estado...


- Não, Vossa Majestade, eu só queria saber se poderia ajudar meu povo. Batalhamos muito para termos o que tivemos, não é justo que nos tirem nossas felicidades n'um só aceno.

O rei se pôs a pensar na charada novamente. Olhando para os rostos ansiosos, prontamente respondeu aos dois rapazes.

- Ora, um rei que não morre
E que é vitalício,
Caro plebeuzinho e nobre,
É só o Reinício!


O encanto se desfez, o país se tornou feliz mais uma vez. O mago arrumou suas malas e partiu para outro lugar ainda não desgraçado. Antes, cumprimentou o rei pelo feito. O rei foi aplaudido pelo povo em uma passeata de dois dias. Depois todos cansaram e foram dormir.

O presidente renomearia Luiz VII, Ministro da Segurança Extrafísica. Todos estavam satisfeitos com o rei, ninguém mais caçoava do rei, além de ser, agora, útil, ele conseguia, finalmente, completar suas quadrinhas.

Tempos depois, os jornais exibiam manchetes com fotos de Luiz VII e do mago, juntos, dias antes de ser propagada a maldição. O rei nega veemente qualquer relação com o criminoso. O caso seria melhor investigado pela polícia federal. Aliás, o lugar já tinha um veículo de comunicação e uma polícia federal. Era um presidente muito eficaz...

(Solano Lucena
baseado no poema de Luiz Tatit)