quarta-feira, março 30, 2005

O circo chegou

Ele a viu antes do show, estava linda. Sua nova casa era essa, havia saído de São Sepé para estudar e acabou ficando por ali mesmo. Ela não o olhava com os mesmos olhos. Também, depois de tanto tempo. Ele pensou em contar que depois dela ter ido para a faculdade, ele resolvera fugir de casa. Pensou em contar que, diante das incertezas da estrada, ela era uma estrela que iluminava seu caminho. Pensou em contar que seu nome não era aquele, Horácio era o que estava escrito na revista. Quando ela perguntou, ele havia esquecido o próprio nome e dito qualquer coisa: “Horácio!”.

Ela o viu antes do show, ele estava tão diferente. Era artista de circo, sempre foi muito engraçado e querido, todos gostavam de Horácio. Ele ainda a olhava com os mesmos olhos que lhe deram adeus na rodoviária. Ela pensou em contar que o procurou meses depois de ter partido, estava disposta a ficar com ele para sempre, mas ele já havia saído de casa. Pensou em contar que era noiva e que seu amado estava a esperando na fila da pipoca. Pensou em contar que, por uma loucura de amor, largaria tudo, noivo, diploma, carreira, cidade. Ela já havia pensado demais nessa vida.

Mas não falaram sobre nada além do superficial. Ele se dirigiu ao camarim, ela foi à fila de pipocas. No camarim ou na fila, algo os atordoavam. Não era a música, era algo muito mais alto. Ao deixarem seus corações de lado, eles contradiziam todas as promessas que fizeram durante a fase mais feliz de suas vidas, a juventude.

O espetáculo começava com números de mágica, animais, trapezistas e equilibristas. A próxima atração eram dois palhaços. O homem de smoking, então, chamou ao palco a dupla mais querida do Brasil, Piroca e Piçolito. Digo, Paçoca e Pirulito. A risada era contínua, principalmente entre as crianças.

E, ao se aproximar do mestre de cerimônias, um palhaço lhe rouba o microfone. Tropeçando em seus sapatos coloridos, chegava ao lado esquerdo do palco. Olhava para uma mulher que estava de braços dados com sua companhia. Declarou-se, mesmo assim. Descartáveis palavras de amor se perdiam no ar e roubavam a atenção de todos.

Suas mãos tremiam em meio ao discurso apaixonado. Lágrimas escorriam borrando seu rosto. Ao parar de falar, ouviu-se um silêncio raro debaixo daquela lona. Ele baixava a cabeça. Pensava no que deveria ter dito há tempos. E olhando nos olhos de sua amada, desferiu: “Só quero que tu me olhes como uma mulher olha para um homem”.

Imediatamente gargalhadas tomavam a platéia. Luzes o focam solitário. Tiram-lhe o microfone das mãos e seu companheiro o empurra de volta ao camarim. Palhaço Pirulito, senhoras e senhores!

Ele estava sentado com as mãos na cabeça escondendo o rosto envergonhado. Seu desespero era visível. “Tu levas alegria para quem precisa, é o trabalho social mais carente de recursos que existe, nunca te esqueças disso”, disse o outro palhaço. Ele havia entendido as palavras certeiras. Deu um sorriso amarelado... E morreu na jaula do elefante cor-de-rosa enforcado por uma gravata de bolinhas.

(Solano Lucena)