quarta-feira, março 30, 2005

Vivo Sonho

...bom. Pode ser que a mamãe não volte. Mas eu vou estar sempre aqui. Sempre. Dissera ele ao fruto de seu amor, sua filha, depois de uma longa conversa antes de dormir. Agora, apaga a luz e durma, viu? Papai já vai também. Bons sonhos. E a porta gemeria até o estalo final de seu trajeto.

De manhã, a mulher de sua vida fez a mala com as roupas que mais se sentia à vontade. A mala era única, nem bolsa nem celular nem beijo de despedida. Ela não estava se despedindo. Abrir as portas e as grades que separam um condomínio de apartamentos do resto do mundo, não era se despedir, era sair voando.

Depois de desejar bons sonhos aos dois amores de sua vida, ele entristece. Sentara na cama do casal. Via, no espelho, as fotos. Via o travesseiro cheiroso. Via, no espelho, seu reflexo. Ele a desejava ainda, apesar da briga. E muito. Via, no espelho, sua imagem patética. Contornara o corpo dela em mãos vazias. Via suas roupas jogadas na cadeira. Via lágrimas que não pareciam ser superadas. Não via só a felicidade, pois essa de manhã partiu.

No chão, estavam as sandálias de salto que ela usara na noite anterior. Por que não levara ela o seu presente? Possivelmente, por não ser tão sofisticado como a sua vida, agora, civilizada. Não combinaria.

Sua sandália. De salto, sandália que a colocava mais próxima do céu. Sua sandália. Era o começo ou o fim da mulher que amava. Se fosse começo, era uma introdução perfeita, anunciava bem o que mais vinha. Se fosse fim, era o desfecho que antevia o chão, altar por ele estabelecido. Fé, amor e esperança eram depositadas naquela imagem de mulher. E nada foi em vão.

Com a mesma mão direita pegara as duas sandálias. Tirara as meias, descalçara o sapato e olhara de novo seu presente à mulher. Calçara. Apertado, mas lhe coube. Era estranho. Caminhava de um jeito engraçado. Abriu o armário, estava ali o vestido de festas preferido dela. Onde ela colocava a maquiagem mesmo? Era esse o batom que ela parecia tão sexy, mas isso era um segredo que ele não lhe contava de jeito algum. Joguinhos de casal.

Ele estava vestido de deusa. A barba rala e a voz disfarçada temperavam a diversão. Beirava o ridículo, mas essa era a graça. Fazia poses para o espelho. Beijinho. Mão quebrada. Bolsinha girando. Dedinho na boca. Marilyn Monroe. Playmate. Ele se divertia como não se divertia há anos. Sua risada era alta, mas não acordara a filha que dormia no quarto ao lado.

Depois de tirar o vestido e ter experimentado a lingerie, ele caíra de joelhos no chão, ainda rindo. Hahahaha! Olhou-se. Estava pintado com as cores da mulher que lhe abandonou. A expressão do rosto não era mais tão feliz.

Pelos meus cálculos, três socos no espelho - que se desfazia aos seus pés - seriam 21 anos de azar. O tempo exato que ela demorara a perceber que naquele apartamento escuro mesmo estava a sua vida. E um homem que ainda lhe recebera de braços abertos.

(Solano Lucena)