sábado, outubro 28, 2006

O Muro

Eu voltava da escola e a kombi me deixava na esquina de casa. Caminhava algumas dezenas de passos e colocaria a bolsa sobre o sofá. Iria lavar as mãos e iria almoçar. E, possivelmente, iria reclamar da comida também. Eu fazia isso em dias comuns. Mas nem todos os dias que eu fazia isso eram dias comuns.

Ao caminhar meia-quadra, eu passava por um muro escrito "Seco MD". Seco era o meu amigo e MD, o meu bairro. O que me chamava a atenção estava por detrás daquilo, na verdade. Eu ouvia vozes atrás do muro. O muro escondia alguma coisa... Claro, é um muro. Mas é alguma coisa diferente. Meu pai disse que é um terreno baldio. Pode ser, pode ser. Eu duvido. Sempre, né?

Pedi a ajuda de dois amigos, o Pedrinho e o Fábio Marié, da Hugo Ribeiro. Quero conhecer o outro lado daquela muralha. Muralha, que aventura isso seria. Eu sempre fui bem magrinho e meus braços não teriam força p'ra derrubar a parede. Mesmo se tivessem, seria um desperdício. O muro fica melhor assim, em pé.

O Marié encontrou uma tábua perto do lixo, o que era muita sorte, já que aquele era um dia de lixo molhado. Molhado não, se diz orgânico. Ok, já temos tudo: uns aos outros e a tábua. Eu pensei: a gente pode jogar a tábua e acertar a cabeça de alguém do outro lado com ela... Eu também pensei: a gente pode usar a tábua p'ra cavar um túnel subterrâneo e atravessar o muro por baixo... E o Pedrinho perguntou: porque a gente não encosta a tábua assim, enquanto alguém sobe nela e vê o outro lado?

Foi unânime a decisão que quem subiria era eu. Eu sempre fui muito magrinho e isso também pode ser lido como levinho. Eles entrelaçavam os seus dedos, como se formasse um estribo, onde eu colocaria meus prematuros all-stars e seguiria com um passo para o alto da tábua.

Eu era o maior.

Com os pés no degrau que a tábua fazia encostada no muro e com as mãos no topo desse, que meu nariz não alcançava, eu fazia força com os braços. Os braços me levariam até a visão que eu pretendia ter. E eu estava certo.

Do outro lado do muro, pessoas arrumadas corriam por um jardim estranho. A comemoração era em torno de um casal de meninos. Havia um lago onde gente cantava com roupas nas mãos. Havia uma casa de madeira onde gente dançava outras músicas. Havia uma fogueira onde gente batia palmas. Havia jóias nos pulsos de toda gente. Havia um muro que eles cobriram com árvores e arbustos. E havia meu nariz ali plantado.

Meus braços não agüentariam muito tempo. Antes de desabar com tábua e tudo, a senhora mais velha me piscou o olho.

E aí? E aí? O que que tu viu lá? O resto... O resto? Lixo? É... Hã... Lixo, sim.

Eu sabia que era um terreno baldio. Eu te falei, trouxa. Meu pai tinha razão, já que tu não tem pai, tu devia ouvir o meu. Tá, mas, e os barulho? Os barulhos devem ser de cachorro, de rato, sei lá. Vambora...

Foram.

O resto era o restante. A cultura que a cidade marginaliza e o muro esconde. Eu falei isso, na verdade, eles que não entenderam.

(Solano Lucena)