sábado, maio 07, 2005

Coração, órgão propulsor

Sou filho de um poeta e uma artesã. Filho de poeta, poetaço é. Meus pais me contavam desde cedo de como as pessoas viam os poetas, de como os tratavam e de como éramos inofensivos perante toda essa hostilidade. Se, por um lado, éramos os explicadores da vida - para nós o mar sempre foi menor que Maria. Por outro, éramos a trilha certa para o fundo, a desesperança era clareada com nossos olhos, e isso entristecia um mundo.

Desde pequeno tenho irreversíveis versos sobre esse trauma, lembranças opacas me atormentam.

O primeiro dia de aula.
- Você é poeta, né? Papai disse p’ra ficar longe de vocês. Dá-me logo essa flor da cor de meus olhos que colheste no mais alto galho da mais bela árvore e vá dar uma volta. Meninas não foram feitas para vocês idiotas.

As brincadeiras que faziam.
- Hahaha! Delicado poetinha, batedor de poesia!

Isso quando não eram mais agressivos. As brigas na hora do recreio.
- Faz um poema com isso agora, poetinha. Hehehe.
- “Ó, menino valente de tristes casas Sei de tuas dificuldades. Mas é quando o preconceito bate as asas...”
- Dá na boca do estômago, aí ele cala a boca!

Cresci e as coisas não pareciam tomar novos rumos. Ainda era distraído e ingênuo. Veio a juventude, veio a festa de formatura. Soube que quem encantava cada dia meu, estaria neste baile. E lá eu a vi sentada junto do orador. Era esse o momento para dizer a ela de uma vez por todas tudo que aqui dentro se passava.

- Agora ele vai declamar uns sonetinhos, tá? Puxem seus travesseiros! - todos riram durante inacabáveis minutos. Estagnado estava em frente dos dedos que insistiam em apontar-me. Fui até o bar esquecer.

Cheguei em casa tarde. Não estava acostumado a beber. Foi difícil sair daquele lugar enquanto todos me rodavam. Lembro da noite de solidão. Chorando em frente à caneta e o papel. A mais linda menina, dona de minhas estrofes, delírio de minhas prosas, beijara, naquela festa, o menino valente de tristes casas. Meus olhos estremeceram. Pedia socorro em voz falha. Quis voltar. Isso não era bonito, isso era eu mesmo. Angustiado, quis cavar um fosso, encerrar-me, por fim. Olhava as frágeis mãos de poeta, os joelhos obedientes no chão, as olheiras de quem sabia apreciar com justiça seus dias ensolarados e a cama arrumada (ninguém havia dormido nela essa noite). E era somente isso. Era somente eu.

Mas quando cheguei ao fim de minhas lágrimas, resolvi renunciar a punição. Precisava encontrar alguém. Alguém acima de meu merecimento. Alguém que me recolha pequeno em seus braços e junto ao seio e à cruz, diga-me que não preciso me preocupar mais, tá tudo bem, tá tudo bem...

(Solano Lucena)