domingo, junho 12, 2005

Eu tenho

Um homem de colete amassado e bermuda surrada entra no ônibus. Ao ser indagado pelo trocador curioso sobre qual método de pagamento utilizaria para cumprir sua passagem, o homem disse:

- Sinto muito, senhor cobrador, mas não tenho dinheiro. Será que posso passar por debaixo da roleta?

O cobrador parecia ter se aborrecido com aquilo dito pelo homem. O xingava e o humilhava na frente dos muitos passageiros que se riam.

- Porra, será que tu não tem vergonha na cara, não?

- Sim, vergonha eu tenho, senhor, eu só não tenho dinheiro.

O funcionário do ônibus levanta os braços e começa a reclamar alto. Ria também. Diz ser um absurdo e que o homem não tinha a mínima consideração com quem acordava cedo para viver o batente oito horas diárias por um salário mínimo no dia 30.

- Mas consideração com o trabalhador, eu tenho, senhor, eu só não tenho dinheiro.

- O que eu faço com um desses, Marcão? – dirigindo-se ao motorista também sorrindo.

- Quer que eu chame o fiscal ali?

- Chama.

O fiscal entra no carro e sob o olhar atento dos outros passageiros que olhavam para o pedinte com raiva, o pergunta:

- Qual teu nome? Tu vai p’ra onde? Otávio, será que tu não tem respeito com quem tá dando duro para chegar na hora no escritório, na aula, na fábrica? Será que tu não tem respeito por quem resolve levar a vida a sério, ao invés de se divertir passeando de ônibus?

Abaixando a cabeça e falando com uma voz fina, o homem diz:

- Respeito eu tenho, senhor, eu só não tenho dinheiro.

- Ele é meio problemático, né? (os três funcionários da companhia de transporte público riem) Deixa o pelado ir até o centro...

O homem levantou a cabeça e disse:

- Se olhares bem, verás que roupas eu tenho, senhor, eu só não tenho dinheiro.

Quando o fiscal olha de novo para trás, a cabeça já estava de novo onde todos ali queriam que estivesse. O homem pôde passar pela roleta e ir até o centro.

O cobrador ainda iria dar uma última cutucada.

- Conseguiu, hein? Feliz agora, pelado?

Indagado, levanta a cabeça e olha firme para aquele homem com o crachá pendurado na camisa:

- Feliz eu já sou, senhor. Eu só não tinha certeza.

(Solano Lucena)