quinta-feira, junho 23, 2005

Uma casa, um apartamento, um casamento, um casal

Fazia frio do lado de fora, o namorado trouxe o grande casaco. Um beijo e um sorriso e caminhavam abraçados e iam até o carro. Ela tinha dificuldades de pôr o cinto e ele a ajudou. Estavam quase na esquina e ela lembrou: a cuca para o café da manhã!

A mãe dele era sempre tão atenciosa. Ela a chamava de filha loura. A filha loura pegou, então, o pacote da cuca, correu até a calçada do lado oposto. Acenou para as senhoras da janela e entrou no carro de novo. Esse cinto estragou? Ele não tá prendendo!

As chaves de casa eram jogadas em cima da mesa como um grito de liberdade, estou onde sempre quis estar. Ela colocava a cuca no armário, ele preparava o banho. As toalhas? Que que tem? Não estão na gaveta. Ah, entrou água na cozinha, tive que enxugá-la. Tão estendidas ali. Ele beijava sua boca como um grito de liberdade, mais uma vez estava onde sempre quis estar.

Quem diria. Ela. Se ela tivesse três amigas e um namorado antes, ela magoaria as três e esfaquearia o coitado. Era incrível o poder de se desentender com os outros. O olhar blasé, o sorriso tímido, as poucas palavras sempre certeiras, sua feiúra estrategicamente confortante, tudo nela o fazia feliz. Enchia a boca para dizer seu nome, estou casado com a. Ele também. Quem diria. Casado. E parece que o caso é mais grave, ele estava apaixonado.

E ela, mesmo melancólica, mesmo achando que a vida poderia ser um pouco mais fácil, estava satisfeita até. O namorado era bonito, mas não era lindo. O carro era novo, mas não era do ano. O apartamento era espaçoso, mas não era próprio. Ela tinha um namorado, um carro, um apartamento e um emprego. Parece que tudo estava dando certo. Quem sabe ela esteja apaixonada por si mesma nesse momento... No exato momento que ele tomava banho.

(Solano Lucena)