segunda-feira, julho 04, 2005

O Problema do Brasil

Pessoas bem vestidas fazem fila. Homem baixo de cabelos brancos é o último. Homem negro de óculos grossos entra.

- ...é, de novo essa merdinha. Esse salariozinho fodido p’ra sustentar dois filhos e uma mulher. Não é fácil. Lá em casa, seguimos a ideologia da minha tia: se sentir fome, vá dormir.

Homem baixo de cabelos brancos se vira para o homem negro.

- Como é que tu pode falar assim? Coloque suas mãos para cima e agradeça a maravilha que é estar vivo, infeliz. Um emprego, filhos, uma mulher, uma casa, saúde, uma sábia tia...

Homem negro de óculos grossos responde.

- Ô, mas eu não tenho nenhuma maravilha na vida, sou professor de geografia em ensino público. Sabe o que um dia desses um aluno me disse? Que o problema do Brasil é ter brasileiros demais. P’ra ele, um presidente estrangeiro é um caso urgente, resolveria tudo. Já ouviu merda maior? Minha vida passa longe de qualquer maravilha. Deus esqueceu de mim quando traçava o destino para esse mundo.

Homem baixo de cabelos brancos se indigna. Voz engrossa. Aponta o dedo. Rosto vermelho. A saliva é despejada a cada sílaba.

- Ora, homem! Que dizes? Queres dizer que estás duvidando do plano celestial para com seus discípulos? Achas Jesus um amador, é isso?

Homem negro de óculos grossos responde parecendo desiludido. Pessoas em volta – caixas e a fila – reparam a discussão.

- Não. Não disse isso também. Não sei. Não acho nada.

- Nada? Como assim? Não tens opinião sobre Ele?

- Não.

Assim, repentinamente, o chão abre em três, e no meio da fenda surge um enorme homem com uma armadura medieval prateada, uma longa barba branca e uma energia florescente em volta de seu corpo, isso deu uma certeza para aquele infiel, é Deus.

- Pai, esse homem pecador contesta Tua existência, mas saibas que cumpro os rituais de amor a Ti diariamente. Sou bom e ajudo a quem posso. Perdoe a alma desse pobre infeliz.

- Ná, eu gosto do Senhor, fizeste o céu e o mar. Acho bem bonito.

- Quietos, homens! Não quero ouvir mais suas vozes! Tu não crês em nada. Não acreditas que a vida pode ser mais bonita que a rotineira sala destruída. Tu não vês o outro como um próximo, tens medo de inovar e esqueces da função que exerces, não mostras aos jovens que, se passam fome, é porque não se organizam para evitar tal acontecimento. És um homem incompleto como ser. E quando me vês, falas isso? Deverias sentir vergonha do seu egoísmo... Olhe aquele irmão no sinal. Não tem pernas e, ainda assim, diverte o sádico conterrâneo com as embaixadinhas que faz. Ele não receberá dinheiro algum daquele senhor. Nem do próximo. Nem do outro ainda. Mas um homem a pé entenderá que tem muito mais do que precisa e o dará dinheiro para seu tratamento. Entendes a razão de viver? O ser pequeno não alcança o céu. O ser pequeno rói as paredes para que lhe caia o céu sobre a cabeça...

E Deus desaparece como a mesma intensidade que chegou. O infeliz homem senta-se na calçada. Vê o semáforo fechar pela terceira vez, e pela terceira vez, o homem do sinal não ganha nada com suas brincadeiras. Ele, então, olha para cima e resolve dar o dinheiro de seu trabalho para aquele cara. “Você merece”. Sai com a consciência tranqüila de quem ajudou para um mundo melhor, cumpre as promessas que fazia diante de qualquer palestra sobre o domínio norte-americano: ajudaria seu país no futuro que foi proclamado.

- Aí, Damião. Pode sair daí. O cara me deu um dinheirão, véio.

- Vixe, isso que é piedade, hein?

- Hahaha!

- Tá, um p’ra mim, um p’ra ti, um p’ro Damião, um p'ro gerente e um p’ro tio dos efeitos especiais...

(Solano Lucena)