sexta-feira, março 24, 2006

O Escritor de Correntes

Saiu de casa com a primeira camisa que encontrou sobre a cadeira e a barba por fazer. Tomou antes um gole do café amargo de anteontem, parecia esquecer que para onde ia só existia café e afazeres.

Atravessava correndo na chuva a avenida mais movimentada do centro da cidade. Dava bom dia p’ro porteiro que sempre lhe perguntava aonde iria. Quatro jogos de escada, uma porta no fim do corredor escuro e uma sala de minúsculas dimensões.

- E aí, Luis Fernando, isso são horas? – piada interna, trabalhava com textos e já havia assinado alguns deles com o nome de Luis Fernando Veríssimo, escritor renomado, cuja assinatura lhe renderia uma ótima “divulgação”. Sim, ele trabalhava com textos. Era um escritor de correntes. Correntes são textos de linguagem simples, enviados pela Internet, normalmente indesejados, mas sempre presente em caixas de entrada ou lixeiras de e-mail – confira alguma no seu.

Seu trabalho era a chamada “fase 1”, o objetivo, o texto em si. Coisas do tipo, “Cada instante de sua vida é sagrado” ou “O ensinamento do menino que colocava peixinhos mortos de volta no mar e o capitão rabugento que achava isso uma grande bobagem”. Grandes sucessos de Luis Fernando. O dinheiro vinha com o patrocínio de marcas ou da família de desaparecidos.

A “fase 2”, as ameaças, era responsabilidade do Jão. Jão era um negralhão forte, 2x2, que já havia sido segurança de casas noturnas da cidade. Muitas casas noturnas. Muitas mesmo. Mas diz a lenda que nunca precisou bater em ninguém, bastava apenas algumas palavras para impor respeito em qualquer um. Sua fama é de nunca errar. E Jão é muito bom com suas ameaças.

Era horário de almoço. Dois ou três cigarros Marlboro. O escritor de correntes estava sentado em sua cadeira a pensar. Pensava como sua vida mudou de uma hora para outra. Trabalhava em um próspero jornal, era chefe de redação. Sua mãe era viva e seu pai não havia entrado ainda em depressão. Sua casa era grande e pronta para receber crianças. Havia uma mulher que o amava... E eles estavam noivos. Noivos.

Sua vida não era um mar de rosas, claro, mas não era de todo ruim também. Não era, ao menos, podre, como é agora. Sua sorte foi que o antigo escritor dali tinha morrido e ele pôde continuar seu trabalho. Sorte... Quem lê correntes? Ninguém! Nem ele. Nem ele lia antes de começar a escrevê-las. Ficou pensando como seria sua vida se tivesse encaminhado aquela corrente que recebeu há cinco anos. Antes do desemprego. Se tivesse encaminhado para, pelo menos, cinco amigos...

Nunca foi supersticioso, ainda mais com quem joga pragas dizendo saber de “todos os seus passos”. Baboseira, óbvio. Mas talvez fosse hoje um colunista, estivesse casado, fosse pai e passasse um dia das crianças junto de uma família de verdade. Talvez a culpa seja dele. Talvez toda a culpa seja dele. Talvez tenha toda a culpa da morte de sua mãe. Dirigiu-se ao banheiro do apartamento ao lado – garotas de programa. Soqueou as paredes daquele repugnante lugar. Cortou seus pulsos com uma gilete velha. E se pôs a chorar e a morrer por sua ignorância...

Eu sei de todos os seus passos. Eu sei de todas suas dores, sei a quem você ama e sei o que essa pessoa sente por você. Eu sei o que você faz, sei o que deseja e sei o futuro que você terá. Eu sei o que pensa, sei quando não pensa e sei do que pensa de e-mails assim. Mas você tem 15 minutos para enviar esse texto para, pelo menos, cinco pessoas e se mostrar inteligente e preocupado consigo mesmo. Ou será mais uma vítima da má sorte no amor, de uma carreira profissional decepcionante e uma vida vazia.

E, acredite, Jão é, realmente, muito bom com suas ameaças.

(Solano Lucena)