sábado, novembro 27, 2004

Clandestinamente

...a psicóloga disse p’ra minha mãe, uma vez, que eu era só muito imaginativo. Achei muito legal isso, pensei profundamente em ser psicólogo e sentenciar a vida dos outros também.

Não faz muito, eu era criança, criava meus super-heróis. Sempre os imaginava todos juntos, tomando cerveja e comemorando o aniversário de trezentos anos de algum antigo mestre ancião... Hã? Meus super-heróis preguiçosos? Não, claro que não! Eles já tinham vencido o mal, e agora a paz estava conosco. Os deixava lá tomando cerveja sossegados, chegando tarde da noite em casa, morrendo de medo de acordar a super-mulher e terem que precisar inventar alguma história de Kriptonita ou Godzilla... Não sei porquê, mas tinha absoluta certeza que eu ficaria rico inventando super-heróis. O meu primo mais velho ia lá em casa quebrar a ponta dos meus lápis, pisar na armadura dos meus Cavaleiros do Zodíaco e me dizer que era impossível ganhar a vida dessa forma. Que os super-heróis não eram mais inventados, agora eles eram reinventados. Que se eu quisesse fazer um Batman 2.000xp, tudo bem, mas inventar outro que pudesse bater o clássico, era impossível. Eu não gostava de ser como era p’ra ser.

Depois veio minha época de escola. Era uma sala de aula inteira fazendo barulho, criança chorando, bolinhas de papel voando, outra criança chorando, aviões aterrizando e uma professora baixinha e rouca indignada com tudo aquilo. Eu? Eu estava no canto da sala desenhando. Lembro-me que acabava correndo a prova p’ra poder desenhar alguma coisa atrás dela. É claro que nenhuma professora avaliava o desempenho do meu efeito de luz e sombra. Acho que elas nem viam também. Minhas notas não eram muito boas, então resolviam chamar a minha mãe. Eu tomava um xingão da professora, da diretora, da minha mãe e da minha dinda (minha dinda sempre estava apoiando a minha mãe...). Eu não fazia tudo errado. Eu só não gostava de ser como era p’ra ser.

Bom, até que um dia, bem mais tarde, minha professora de Literatura pediu aos alunos um poema com métrica e rima. Esse poema valeria nota. Lembro que ninguém gostou. Nem eu, p’ra falar a verdade. Mas resolvi fazer o melhor possível. O nome do poema ficou “Escrito a sangue, favor entregar em mãos”. Era sobre um soldado que escrevia uma carta para a sua amada e tal. Claro que não ficou grande coisa, bem longe disso, mas, ao menos, descobri lições para a vida (açoite rima com noite e eu gosto de escrever). Desde então, meus cadernos de aula tinham dois começos, (1) o começo tradicional, onde eu colocava o nome da matéria, o nome da professora e quando seria a primeira prova do bimestre e (2) o começo alternativo – por trás, onde eu escrevia poemas, crônicas, contos e anticontos. Normalmente, esse segundo começo chegava ao meio do caderno primeiro, não me orgulho disso hoje, mas na época achava que era tudo besteira, eu não gostava de ser como era p’ra ser.

Tá, mas o colégio não é para sempre, eu tive que escolher algo que combinasse comigo para a vida. Eu tinha que ser algo para ser grande. Ninguém é só grande. Bom, talvez alguns, mas ninguém que eu respeite muito... Fiquei em dúvida. Serei um publicitário ou serei um poeta? O lado legal de ser publicitário é que eles fazem super-heróis, isso é bem bacana. Mas o lado legal de ser poeta é que eles são, hoje, os meus super-heróis, e isso é bem mais bacana. O certo é que enquanto penso profundamente sobre isso, resolvi apenas escrever clandestinamente...

Enquanto eu escrevo, descubro coisas que estariam presas em mim. Não coisas muito surpreendentes, coisas comuns, facilmente encontradas, mas que mudam muito minhas concepções, com o tempo. Eu gosto de ser como era p’ra ser. Mas, agora, não mais dito por alguém. Eu acho muito importante os psicólogos, eles sabem tudo que deveríamos saber antes. Bem antes. Eu sei que ainda vou me fazer um super-herói. Nem que seja p’ro meu filho. E eu vou continuar escrevendo, até achar a rima ideal. Ou até ganhar dinheiro para comprar um dicionário de rimas. Minha meta de vida é uma ilha de opções. E tenho o mundo para escrever um sonho. Mas sempre com o sonho de reescrever o mundo.

(E, não, eu não sou bobo, talvez um pouco lunático, imaginativo. E, sim, digo isso só até o próximo parágrafo auto-explicativo...)

(Solano Lucena)