terça-feira, maio 31, 2005

Olhos de Amigo

...e meus olhos pretos perseguiam teus olhos ardósias. Talvez com uma esperança de encontrar neles um pedaço de paraíso, de lá se catequizarem, não sei. Sei apenas que são olhos coloridos. De cores e sentidos. Reparava, um dia desses, as nossas diferentes visões de mundo, sabe? Meus olhos parecem mirar milhares de olhares. E percorrem todos eles sem nada exaltar. São olhos compridos. Os teus olhos, não. Teus olhos não escorregam em outro olhar, parece que nada mais interessante há para se ver na vida. Meus olhos acham beleza nessa tua forma de enxergar. Nos teus olhos de vidro...

Olha nos olhos.

Parece que cada vez mais nos distanciamos. Meus olhos são diluídos em água e sal. Bebem do desejo e se alimentam de esperança. Culpa minha, talvez. Talvez tenha me cegado. Talvez tenha visto demais. Talvez tenha me maravilhado em tuas formas – o que teus olhos sábios nunca quiseram. Sabem de toda beleza possível. E escorregam nos meus olhos para nada explicar... Meus olhos comprimidos. Seguem pretos. Seguem sofridos. Seguem mirando milhares de olhares. E construindo novas formas de te olhar, de te olhar com olhos de amigo.

(Solano Lucena)

Onde tenho passado?

Parece a rua de sempre. Por aqui passam os mesmos olhos de garotos determinados a vencer o time adversário no jogo da cancha. Todos competindo para ver quem levará o objeto principal (a bola) para o campo de batalha. Entre eles, os filhos da Kátia, Caio e Carlos Alberto.

Seu Periquito discutindo futebol na esquina com o Osório. O sobrinho do Seu Periquito foi dispensado do nosso time, enquanto o neto de Osório foi contratado por um time em Portugal. Já jogamos juntos, era ruim...

Olha a Kátia chamando os filhotes p’ra tomar banho! Como engordou. Coitada, parece que o marido não gosta que ela saia de casa. Ele não é bem certo. É o segundo casamento dela. O anterior, com o irmão da Dri, não teve muito sucesso porque ele gostava de viajar e ela tinha que cuidar da Dona Sueli.

Parece a rua de sempre, o Ronaldo e o Tiago andando juntos, arquitetando como se dar bem com as mulheres. Olhando para todas que passam e falando bobagens. Ronaldo tentou seguir a carreira militar, mas não pôde. Tiago nunca quis nada com nada.

Parece a rua de sempre, o Selmo levando seu cachorro de raça húngara, Ludolfo, p’ra passear. Só que agora, junto de sua irmãzinha, Dora, que será aeromoça quando crescer. A Dani tentando mudar o jeito de ser de seu novo namorado, nunca conseguiu com nenhum. O Beicon traindo outra vez a Camila, alugando o apartamento da Mara, que foi veranear em Arroio com o marido e o filho dele. A mãe me dizendo que a laje é fria, que é para eu pôr uma almofadinha antes de sentar.

- Tá, mãe, já vou buscar!

E a chuva! Ah, a chuva! Todos correm para suas respectivas casas espalhadas pela rua. A chuva lava a calçada e os carros. Tranca os meninos em casa e me causa uma saudade. Quem amo não se senta ao meu lado p’ra ver a chuva. Ela não pega na minha mão e não a põe sobre sua barriga enorme. Pode ser que não seja ele meu sonho, mas será tão amado quanto. E o seu sorriso amarelo de cigarro é tudo aquilo que queria ouvir. Ali eu seria feliz... A saudade que sinto é a pior de todas as saudades. É a saudade de tudo aquilo que sei que acontecera comigo, em algum lugar, em algum tempo. Na minha rua com pedrinhas de brilhante, ou na casinha de tijolos dentro do meu coração.

(Solano Lucena)

As Paredes da Casa de deus

deus espia da janela com o canto do olho. Espia jovens tatuados fazendo sexo grupal sobre o capô d’um carro. Homens engravatados pulando de arranha-céus. Mães desesperadas chorando pelos seus filhos na guerra. Maremotos, terremotos e tsunamis varrendo áreas habitadas. As pessoas não sorrindo. E um rei investindo em uma nova bomba atômica para se fazer respeitar. deus espia da janela com o canto do olho. Mas, dali, ele via somente a Ala Norte.

A Ala Norte: Ala Norte é como se chama os países de primeiro mundo ou desenvolvidos, tais como Estados Unidos, Japão, França, Alemanha, Cingapura ou Inglaterra. Além de sua semelhança geográfica, o que os engloba dentro de uma mesma denominação é o fato de terem uma política econômica de sucesso, o capitalismo. Capitalismo é o modelo econômico que tem por base a propriedade privada nos meios de produção.

deus fecha as cortinas. Onde estavam suas palavras ali? Quantos iluminados ainda terá que enviar? deus se aborrece. Como? Não podia ter acontecido isso com a Ala Norte, ele tinha tantos planos... Caminhou, então, irado em direção à Ala Sul. Deve ter havido progresso, não seria possível estarem pior.

A Ala Sul: Ala Sul é uma denominação genérica usada para designar nações de economia subdesenvolvida ou em desenvolvimento. Aplica-se, geralmente, aos países da América Latina e da África. O que os engloba dentro de uma mesma classificação é o fruto da divisão geopolítica de poderes e blocos de influência durante o período de Guerra Fria. Guerra Fria é o conflito ideológico travado entre os Estados Unidos e a União Soviética no período de final da Segunda Guerra Mundial.

deus abriu a porta dos fundos. Jovens matavam tatuado com barras de metal, estupravam sua namorada e tomavam seu carro. Homens engravatados voavam sobre os prédios altos. Quem estivesse no chão que se alimentasse de migalhas... Mas as mães podiam abraçar seus filhos. O dia nascia belo. Os apaixonados se declaravam... Até explodir o apocalipse e se formar no ar um enorme cogumelo de fumaça. Um cogumelo de fumaça que derreteria as cabeças que manipulariam uma nova salvação para o terceiro mundo, a Terra.

deus fecha a porta dos fundos. Balança a cabeça. Olha para um botão vermelho. E resolve voltar para a cama.

- Melhor continuarem achando que estou morto.

(Solano Lucena)

quarta-feira, maio 25, 2005

O último que chegar na Sinagoga é a mulher do Bento!

Shamir tinha um álbum de figurinhas da Copa do Mundo de 90. Não estava completo, mas dava p'ra saber bem quem eram os principais jogadores de cada seleção.

Allan era obcecado por pássaros. Ganhou uma máquina fotográfica do seu pai de Natal Judaico. Pai, eu quero uma máquina fotográfica de natal! Foi difícil explicar que não...

Ambos tinham algo em comum, além da grande amizade, eram apaixonados por Judith, a filha de Moises. Ela era linda, dois anos mais velha que eles, lábios apreensivos para dar uma notícia. Irei partir segunda para Marselha, uma cidade na França. Em um mesmo segundo, aqueles lábios condenaram duas vidas.

- Onde você vai também tem pessoas de outras religiões?

- Tem, sim. Muitas.

- Mas também tem a hebraica, né?

- Meu pai disse que sim.

- É verdade que lá quase não tem meninos?

- Hmmm... É... - não quis contrariá-los.

Eles ficaram contentes. A França não havia disputado a Copa do Mundo de 1990. Se fosse verdade que na França não havia meninos, eles poderiam passar quatro anos a esperando. Como fizeram...

Mudavam aos poucos, mas mudavam juntos. Tinham muito medo de preconceituosos. Viam assumir o papado um homem com passado nazista. Viam atentados terroristas nos noticiários. Recebiam cartas saudosas de Paris. E sentiam tudo isso com coração de criança.

Allan despejava lágrimas em água salgada. Shamir era mais sério, parecia não se deixar doer. Tomavam banho de mar e olhavam-se pouco vestidos. Um consolava o outro. Em silêncio. As ondas traziam p'ra terra tudo aquilo que a natureza recusava. Pássaros assim se alimentavam. Beijaram-se. Allan beijava abraçando, Shamir abria os olhos.

- Quando Judith voltar, nós vamos viver a três, não é?

- Sim. Mas, e se ela não voltar?

- Ela volta. A França quase não tem meninos, lembra?

(Solano Lucena)

Homens engravatados não sabem voar

Perdeu o ônibus das 6:20. Decidiu ir a pé mesmo. Só ia passar antes no posto de gasolina p'ra comprar a lasanha de janta. Frango com molho de vegetais ou bolonhesa? Hmmm... Bolonhesa! É melhor não inventar muito.

Ao chegar em casa, deixava a gravata e o terno nas cadeiras que estavam na trilha da cozinha. Maldito microondas! Estragou de novo. Culpa da rede interna dessa merda de edifício. Ah... Sentou-se no sofá. Esfregou os olhos e pôs um DVD do Jimi Hendrix em Wight Island. Foi até a cozinha e aprendeu como se faz uma lasanha no forno. Verificou a secretária eletrônica, nenhuma mensagem em um mês... Ok, sem namorada, sem amigos, sem família, só com uma bosta de cactos que nem latir latia.

Olhou continuamente a sacada. Era ali. Tirou os sapatos por reflexo e se posicionou do lado de fora. Acontecia um diálogo dentro dele.

- Pula logo, porra!

- Mas pular p'ra quê?

- Como assim, p’ra quê? Tu trabalha no atendimento. Já viu vida mais abostada que a tua?

- Ah, pára! Tu tem um bom trabalho, um bom salário, um apartamento com uma vista linda, liberdade... O resto é só conseqüência!

- Conseqüência? Há quantos anos que tu pensa assim mesmo?


Foi quando a vizinha do apartamento ao lado abriu a janela.

- Que você tá fazendo?

- Tô só aqui... Não sei direito... Tava pensando em pular.

- É? P'ra quê?

- Ah, a minha vida não tá muito boa. Tô meio a fim de acabar com ela logo.

- Sei. Mas você acha que fugir melhora?

- Ahm... Melhorar, não melhora. Mas também não piora, né?

- É... Acho que sim. Que coisa... A minha também não tá lá essas coisas. Tem espaço p'ra mais um?

- Onde? Lá embaixo? Olhe você!

- Bá... É espaço p'ra caramba!

- Pois é. Hmmm... Mas você tem certeza que quer se matar também? Você é tão bonita...

- Tenho, sim. Fui casada há cinco anos atrás, meu marido sumiu de um dia p’ro outro. Hoje não tenho ninguém. E minha vida não presta mais.

- Você é solteira? E aquele homem bonito que entra todo dia na sua casa?

- Ah, é meu irmão...

- Não, não o seu irmão. Aquele loiro, alto.

- É o eletricista. Tem um problema de fiação horroroso aqui...

- Ah, bom.

- Quem vai primeiro?

- Hmmm... Eu tava pensando. Vamos desistir dessa idéia absurda de pular? Nós somos tão jovens, temos muito ainda p'ra viver, não achas?

- Desculpa, agora não dá mais. Você moveu dentro de mim um desejo submerso, sabe? Agora é enterrar minha cabeça no asfalto ou nada.

- Nada!

- ...

- Mas por quê? Você não tem pai e mãe?

- Só mãe. Meu pai morreu atropelado.

- Então? Você não pensa na tua mãe? Poxa! Imagina a cara dela ao saber que a filha que tanto cuidou decidiu desistir de tudo de uma vez só...

- Minha mãe deve estar agora em Acapulco ou no Caribe junto do namorado 25 anos mais moço gastando todo o dinheiro do papai...

- E tu acha que ela não se importaria se tu morresse?

- Acho que não. Foi uma recomendação dela, inclusive.

- Nossa...

- É...

- Tá decidida, então?

- Mais do que nunca.

- Tá bom...

- Mas faz um favor? Tu se importa de pular de mãos dadas comigo? Caso apareça no jornal ou alguma coisa, eu não queria que meu marido achasse que eu estava sozinha.

- Claro. Não me importo, não. Seria uma honra...

- Hahaha!

- Então, vamos lá? No três! Um!

- Dois.

- Dois vírgula setenta e cinco.

- Ai, que sem-graça!

- Tá, três...


(Solano Lucena)

Meninos só pensam em sexo

Domingo de sol. Piquenique na cesta. Estavam sentados embaixo da árvore de maçã-do-amor. Beijavam-se bonitinhos. Um selinho, um eu-te-amo, um selinho, um eu-te-amo-mais-ainda... E soltavam risadinhas gostosas do fundo da alma.

O lugar era um parque de sonhos. Anjinhos nus flechavam pessoas vestidas. Um coral cantava temas leves, ao fundo. Coelhinhos coloridos brincavam de esconde-esconde. O verdinho se escondia na grama, enquanto a amarelinha contava até vinte, de olhinhos bem fechados.

Estavam de mãos dadas. Mãos pequeninas. Pareciam dois alfajores. Balançavam os pezinhos na mesma sintonia. Ele de all star azul bebê, ela de sapatinho de boneca - combinava com a jardineira rosa que vestia.

As flores dançavam como bailarinas. O riacho era todo de limonada. As nuvens desciam, "Hmmm... Algodão doce". O piquenique era p'ra pedir a mãozinha dela em namoro.

Mas o céu ficou negro. Ventava muito. As pessoas corriam. Iria chover, e seria forte. O parque estava deserto. Ficaram só os dois embaixo da árvore ouvindo assustadoras trovoadas. Foi quando ela lembrou das palavras de sua mãe:

- Tenha muito cuidado, minha filha. Vou te dizer uma coisa que sua bisavó sempre disse p'ra minha mãe, e ela também sempre me dizia: meninos... Meninos só pensam em sexo.

Ela estampou um largo sorriso no rosto. E ele parecia se preocupar...

(Solano Lucena)

segunda-feira, maio 23, 2005

Medo

tenho Medo
que um dia cerquem
os monumentos da cidade
e aqueles que seriam imortais
os nossos super-heróis cotidianos
tornem-se reféns apenas.

(Solano Lucena)

Ensaio sobre o Frio

De manhãzinha, abra a janela da frente para a brisa do Porto, e deixe o primeiro raio de sol enganar o dia. A notícia nas folhas de jornais-cobertores será: faz frio. E esse frio faz crueldades, juntamente de sua falange de pestes armadas e da ignorância contagiosa. A tuberculose só não mata a poesia.

O frio entra pela janela do ônibus e sai pela manga da blusa. Estremece a bandeira vitoriosa e seca as lágrimas emocionadas de olhos orgulhosos. O frio mata homem jovem em zona nobre.

Despenteia os cabelos do moço em seu primeiro encontro. Faz a menina pensar em trocar a saia pela calça jeans. Seca as roupas no varal - agora elas poderão ir ao shopping. O frio mata pai de família na periferia.

O frio me machuca os dedos ao escrever. E, ainda assim, insiste em entrar por cada fresta da porta. Assobia de madrugada. E me acorda. Sem chocolate-quente. Sem beijo na boca. Sem roupão de seda. Minha sorte é que no inverno era útero. Eu só nasço na primavera. E o frio também mata criança recém-nascida em postos de saúde.

O frio dobra a padaria, levando o cheiro dos pães e avisando que é dia para quem ainda resiste em se levantar. Sopra o cata-vento do menino, que gira como viva mágica, fazendo-o contente. E, finalmente, chega à casa da pessoa que ama. Até sua cama. Sisudo. E esfria aqueles pés que querias muito esquentar.

(Solano Lucena)

quinta-feira, maio 19, 2005

Rastros de Mim

Tardes anoitecem. Flores murcham. Saudades brotam. Terra molhada. Palavras calam. Corações apertam. Olhos inundam. Bocas secam. Bancos vazios. Envelopes chamam. Cartas retratam. Retratos relembram. Pequenos relicários. Presentes, às vezes, frustram.

Carros passam, pessoas passam, nuvens passam. Namorados passam com namoradas. Passam. Passo a passo. Vontades passam. Sorrisos passam. Olhares passam... Minorias ficam.

Cães guiam. Cachorros ladram. Latidos. Amores desamam. Palavras calam. Desamores somem. Silêncio. Defeitos gritam. Feridas gritam. Fraquezas gemem. Porta aberta. Casas caem. Filhos debandam. Famílias abandonam. E a grama pisada. Amigos matam. Amigos morrem. E mortos clamam: nós somos passado!

Noites, amanheçam.

Só o que sobra disso tudo são rastros de mim. Mas, digam-me, até quando?

(Solano Lucena)

terça-feira, maio 17, 2005

Cambalhotas

Movimento conhecido de rotação do corpo sobre a cabeça, não se sabe bem ao certo a origem do ato de cambalhotar. Há quem diga que esse foi uma invenção circense ocidental. Outros acreditam n'uma variação do Rak'ah, ritual islã. O fato é que a cambalhota vem superando gerações e ainda nos é um movimento coreograficamente atual. Na vida, ao menos.

Vida, dona cheia de surpresas, de altos e baixos. Não somos os mesmos durante um mesmo dia. Nem podemos. Primeiro, somos humilhados, depois somos amados, depois somos alimentados, depois somos respeitados e, por último, acostumados. Aí, encostamos a cabeça no travesseiro e deixamos os pés o mais longe possível dela. Na cabeça, uma preocupação, um dia inteiro haverá de ser vivido ainda depois de depois de amanhã.

Parece que quanto mais responsáveis ficamos, mais cambalhotamos. Nesse sentido. O figurado. Porque o literal ficou para trás, junto da bandeja de bolinhos de chuva e da doce possibilidade de ser, um dia, quem sabe, astronauta.

Será que amadurecemos, ou nos tornamos intolerantes? Como podemos esquecer como se dava aquela cambota na grama? Bom, era assim: disposição no corpo, um pouquinho de coragem, a cabeça na terra, impulso nas pernas, o mundo girando na vertical e, os pés, os pés bem cravados no céu.

(Solano Lucena)

terça-feira, maio 10, 2005

Lifeless

Sinos alarmavam. Ouviam-se vindos dos céus.
A morte era prenunciada por um anjo faminto.
Noticia-se: a antropofagia chegara aos réus

Em cabelos encaracolados e em olhos lindos.
E as bocas sujas de sangue sorriam para Deus
Que se lambuzava de sexo, rock e absinto...

(Solano Lucena)

sábado, maio 07, 2005

Negros

Lê meus olhos
diz que poesia
com esses vi dessa vez.

(Solano Lucena)

Coração, órgão propulsor

Sou filho de um poeta e uma artesã. Filho de poeta, poetaço é. Meus pais me contavam desde cedo de como as pessoas viam os poetas, de como os tratavam e de como éramos inofensivos perante toda essa hostilidade. Se, por um lado, éramos os explicadores da vida - para nós o mar sempre foi menor que Maria. Por outro, éramos a trilha certa para o fundo, a desesperança era clareada com nossos olhos, e isso entristecia um mundo.

Desde pequeno tenho irreversíveis versos sobre esse trauma, lembranças opacas me atormentam.

O primeiro dia de aula.
- Você é poeta, né? Papai disse p’ra ficar longe de vocês. Dá-me logo essa flor da cor de meus olhos que colheste no mais alto galho da mais bela árvore e vá dar uma volta. Meninas não foram feitas para vocês idiotas.

As brincadeiras que faziam.
- Hahaha! Delicado poetinha, batedor de poesia!

Isso quando não eram mais agressivos. As brigas na hora do recreio.
- Faz um poema com isso agora, poetinha. Hehehe.
- “Ó, menino valente de tristes casas Sei de tuas dificuldades. Mas é quando o preconceito bate as asas...”
- Dá na boca do estômago, aí ele cala a boca!

Cresci e as coisas não pareciam tomar novos rumos. Ainda era distraído e ingênuo. Veio a juventude, veio a festa de formatura. Soube que quem encantava cada dia meu, estaria neste baile. E lá eu a vi sentada junto do orador. Era esse o momento para dizer a ela de uma vez por todas tudo que aqui dentro se passava.

- Agora ele vai declamar uns sonetinhos, tá? Puxem seus travesseiros! - todos riram durante inacabáveis minutos. Estagnado estava em frente dos dedos que insistiam em apontar-me. Fui até o bar esquecer.

Cheguei em casa tarde. Não estava acostumado a beber. Foi difícil sair daquele lugar enquanto todos me rodavam. Lembro da noite de solidão. Chorando em frente à caneta e o papel. A mais linda menina, dona de minhas estrofes, delírio de minhas prosas, beijara, naquela festa, o menino valente de tristes casas. Meus olhos estremeceram. Pedia socorro em voz falha. Quis voltar. Isso não era bonito, isso era eu mesmo. Angustiado, quis cavar um fosso, encerrar-me, por fim. Olhava as frágeis mãos de poeta, os joelhos obedientes no chão, as olheiras de quem sabia apreciar com justiça seus dias ensolarados e a cama arrumada (ninguém havia dormido nela essa noite). E era somente isso. Era somente eu.

Mas quando cheguei ao fim de minhas lágrimas, resolvi renunciar a punição. Precisava encontrar alguém. Alguém acima de meu merecimento. Alguém que me recolha pequeno em seus braços e junto ao seio e à cruz, diga-me que não preciso me preocupar mais, tá tudo bem, tá tudo bem...

(Solano Lucena)

Caso Blanco

Dia frio. Chuva fina. Céu nublado. Na porta do casarão da tradicional família Blanco, batia um homem de feições sérias e roupas grossas. Sou investigador, disse ele ao mordomo adentrando a casa, faça-me o favor de chamar sua patroa. E guarde meu guarda-chuva, sim?

Seus passos faziam ruídos no chão de madeira. Caminhou como se já conhecesse aquele lugar. Olhou ele fotografias de elegantes homens sobre o pechiché do hall de entrada. Em cada uma dessas fotografias havia uma descrição atrás, Peter Reid, desembargador, 26 de março. Quando descia as escadas uma bela mulher de meia-idade. Loira, sensual e amarrando o robe, ela atraía o olhar do estranho.

- Quem és? E o que queres aqui? – perguntou ela em tom soberano.

- Sou detetive da polícia e quero lhe fazer algumas perguntas, Senhorita Rosemarie – respondeu ele tirando o casaco e o colocando sobre a cadeira.

- Senhora. Sobre? – desceu o último degrau da escada.

- Arthur Blanco – sentava-se n’uma cadeira da sala de estar.

- Meu marido?

- Ex-marido, ele está morto.

Ela parecia lamentar e sentava-se à frente do investigador.

- Já disse tudo que tinha para dizer sobre esse caso – disse séria em voz apreensiva.

- Não, você não disse tudo. Se o tivesse feito, já teria sido desvendado – respondeu acendendo um fedorento cigarro na chama da vela presa ao castiçal.

- Não deverias fumar enquanto estiveres dentro de minha casa, rapaz! – reclamou arrancando o cigarro de palha de suas mãos e o apagando na escarradeira, um cinzeiro improvisado.

- E você não deveria levantar a voz p’ra mim – calmo, entrelaçava os dedos.

- O que vais fazer, me prender? Não podes prender-me por levantar a voz em minha casa – em tom irônico.

- Acredite, eu posso.

Fez-se um silêncio constrangedor na grande e escura sala de estar. As cortinas estavam fechadas, mas as janelas, semi-abertas para um dia descolorido. De uma delas, surgia um gato acinzentado de pêlo aparentemente macio que caminhava até o colo da bela mulher de olhar triste.

- Quando foi encontrado o corpo de seu falecido marido, havia marcas de batom em sua camisa e duas ligações não-atendidas de uma mulher chamada Scarlet em seu celular. Mas, infelizmente, não foi possível contatá-la. A senhorita sabia da existência de alguma outra mulher?

- Não sabia. Mas não duvido. Meu falecido marido era muito de bailar – respondeu acariciando o gato.

Nessa hora, entrou na sala um homem gordo e bigodudo. Vestia um terno branco com um cravo preso à lapela e segurava na mão um copo de líquido incolor.

- Quem é você? – o detetive perguntou ao homem de bigode.

- Michel. – Rosemarie ao agente da polícia.

- Quem é ele? – Michel à Rosemarie.

- Quem é Michel? – o investigador perguntou à senhorita.

- Meu marido – a senhora respondeu ao investigador.

- Marido?

Foram desferidos golpes de chave inglesa sobre o crânio do visitante que rachava, fêmur fraturado que dilacerava a carne, sangue, sangue, muito sangue.

- Charles!

- Madame?

- Limpe essa sujeira, sim? Vou recolher-me para meus aposentos.

- Sim, madame.

Michel era belga, jogador assíduo do Cassino de Monte Carlo, casado pela terceira vez, leitor de Baudelaire e condizente à filosofia do anti-herói.

(Solano Lucena)

quinta-feira, maio 05, 2005

A arte de florescer corações

As flores são do ano. As flores são dos olhos. As flores são dos corações que têm algo a ser dito. Flores de bom dia. Flores de eu te amo. Flores de parabéns. Flores de obrigado. Flores de até logo.

Símbolo de respeito e carinho, a flor é a marca da vida cuja beleza a todos encanta. Presentear alguém com uma flor não é apenas uma prova de sensibilidade e admiração, mas a certeza de ter em mãos seu mais belo sorriso...

(Solano Lucena)

segunda-feira, maio 02, 2005

Poesia

A poesia não salta aos olhos de quem ama. Ela propositalmente se despedaça como louça e corta pulsos com seus cacos. O sangue jorra sobre o papel e traça formas bonitas. O hematoma se infla de orgulho. E o acidente é guardado no fundo da gaveta mais escura - junto dos seus temores e algumas revistas... Poemas de amor verdadeiro não são entregues. É praticamente uma lei. E não há poesia alguma em ser perdedor.

(Solano Lucena)

Publicidade e Propaganda

Em um dia ensolarado, em um dos postos de gasolina da rede, um automóvel vermelho estaciona no fim de uma fila de carros que ali se formava. A fila era comprida. Desce desse carro uma loira formosa que, com largos passos e um olhar determinado, tira seus óculos escuros e parece ir em direção a algo.

Todos os funcionários do posto param a atividade que realizavam para observá-la. Os motoristas dos carros largam as folhas de cheque no chão e olham para ela. Os meninos da loja de conveniência parecem esquecer da promoção de miniaturas da Mercedes Benz e também a encaram. Nesse momento a câmera dá closes na beleza da moça.

Um dos frentistas que ali atendia pergunta a ela se poderia ajudá-la em algo, ela nem sequer o nota. Continua determinada em seu objetivo. E quando chega próxima à bomba, inicia-se uma música-tema de vitória, realização, de superação. Ela tira a bomba do lugar, põe na boca e bebe a gasolina, surpreendendo a todos no posto.

Nesta hora, só o slogan da campanha aparece na tela.

"Nossa gasolina é tão boa que dá até para beber"...

(Solano Lucena)