terça-feira, outubro 12, 2004

Sobre o Bem do Matrimônio

Acorda logo, faz o meu dia se tornar o mesmo teu. Quero te contar o que ontem fiz: arrumei as hastes dos teus óculos e comprei, adivinha, pães-de-queijo. Tudo está sobre nossa mesa.

Enquanto eu rogo, suja tudo que tocas com o breu - nosso temporal de feliz fim. Nunca esqueças dos nossos segredos, do melhor do amor. Porque só nos dois sabemos a beleza. Da poesia da poesia do gostar.

(Solano Lucena)

segunda-feira, outubro 11, 2004

Felizes ou tristes

A Célia achou no marido uma berruga
O velho vê o amanhecer da varanda
A prega sabe que não se auto-costura
O cego nota a claridade e se espanta

O belo acorda ela, acaricia e se avança
A vela é assoprada por sua claridade impura
Bolero acaba se não tiver par para a dança
Na cela, não há luz p’ra ver apodrecer a atadura

- Felizes ou tristes, o sol nasceu.

E sobre o sepulcro do negrume,
uma esperança de céu ao léu. O vaga-lume
se afasta do mártir de costume,
ensaia um bocejo sob o verde do legume,

repousa em suas próprias asas.
Aproveite que em teu cansaço, o maior se esmere,
iluminando causos e casas,
mas na clareza do teu astro, teu melhor revele.

- Indiferentes, a noite era uma esperança.

(Solano Lucena)

A Quadrilha da Drummond

(baseado na poesia “Quadrilha”, de Carlos Drummond de Andrade)

Não, nunca amei ninguém. Pode parecer triste. Pode parecer deprimente. Pode ser até que eu seja, mesmo, fria. Agora, dizer o que me disseram, que nunca procurei um amor, jamais.

Lembro de 1983. Que ano. Éramos conhecidos como a quadrilha da Drummond. Não, somente, graças à praça em que passávamos nossas tardes, mas, também, às inúmeras serenatas que os guris faziam para nós. Joaquim escrevia muitas letras pensando em mim, Raimundo tocava muito bem violão e João... Bom, o João não tinha nada de especial.

Joaquim era poeta. Tudo em que ele colocava a mão ganhava vida. Lembro-me das flores que roubava do jardim da mãe de Teresa, fazia um arranjo com elas (sozinho), escrevia um poema de súplicas, e, com a mesma cara-de-pau de sempre, entregava para alguém na minha casa. As flores, eu nunca recebi, mas a lixeira adorava. Saudades.

Eu era muito novinha. Não pensava em namorar sério, e pensava demais no que os outros achariam. Minha vida se resumia na reputação que teria dentro e fora de casa. Minha vida se resumia em estudar e conhecer pessoas interessantes. Interessantemente interessantes.

Hoje, Joaquim morreu por achar exatamente o que os outros achavam sobre sua pessoa, um tristonho sufocado por suas esquisitices. Joaquim se suicidou há três anos. E, hoje, eu estou casada também. Casei-me com o primeiro homem que apareceu na minha frente. Na frente da minha janela com um jardim botânico inteiro de presente.

Na verdade, eu nunca fui feliz.

(Solano Lucena)

O Rei

Era um lugarejo distante, poucos lá iam, mas todos de lá sabiam: aquele pedaço de terra era amaldiçoado. Bom, na verdade, fazia mais de um século que nada de sobrenatural ali havia, mas a fama continuaria até o ano 2000, ou quando nenhum sobrevivente vizinho pudesse contar essa história.

A primeira maldição aconteceu no reinado de Luís III por um misterioso bruxo de barba grande e cabelos compridos, e ninguém acreditava que aconteceria novamente, pois fazia muito tempo. Já estamos em Luiz VII (sim, houve um erro do escrivão no nascimento de Luiz IV, mas já haviam remediado a situação. Guilhotina.), e a monarquia já havia sido derrubada há décadas. Um jovem, e muito competente, presidente agora governava o pequeno lugar, pela primeira vez houve democracia e todos estavam satisfeitíssimos com aquilo.

O Estado era um vilarejo de nove quadras e um castelo. Nesse castelo, vivia Luiz VII, um rei que não tinha mais nenhum súdito, nenhuma rainha e, muito menos, uma princesa. Ele não podia andar com sua carruagem, pois os cavalos perderam as estribeiras. Ele não podia mais se divertir com o bobo, pois esse achou outro rei que lhe queira. Não podia dormir na rede, porque no reinado não havia parede. Dizem que se alimenta apenas das traças de seus lençóis, mas isso é lenda do povo... O mais estranho nesse rei era sua forma de falar. Ele falava em versos livres, mas nunca na vida conseguiu completar a rima de uma quadrinha.

- É, eu sou um rei, realmente, muito sozinho,
Mas não preciso de ninguém.
Enquanto os outros suplicam por carinho,
Eu me contento com a tevê.


Todos do lugarejo caçoavam do jeito imbecil de ser do rei. Mas ele não se importava, sabia que só o rei é real. Visitava seu povo regularmente, ouvia piadinhas por causa da sua coroa e do seu ar majestoso, resolvia retornar ao trono e descansava.

- Sei muito bem que em qualquer emergência
É o rei que resolve
Por isso, não contento com minha ausência,
Sempre estarei aqui.


Mariu era um menino de doze anos que muito gostava de rir da insanidade do rei altivo, estava sendo alfabetizado graças ao plano de incentivo à escola proposto pelo novo presidente participativo. Sua meta era diminuir o número de analfabetos e, depois, aumentar a taxa de impostos, já que todos teriam condições de sobressair-se. O lugar estava felicíssimo com aquilo, estavam até pensando em realizar essa vitória democrática a cada quatro anos, assim surgiriam novas propostas e o povo só teria a ganhar.

Mas o que aconteceu é que o misterioso bruxo de barba grande e cabelos compridos voltou. Junto com ele, trouxe a maldita depressão do lugar. A maldição era um eterno anoitecer, a fome era perpétua e a guerra era pelo pão vosso de cada dia que caia do céu, duro e mandado pelo Diabo. Junto dessa maldição, uma charada que, resolvida, salvaria todos daquele inferno: “O que é, o que é, o rei que não morre, nunca envelhece e é vitalício?”. Sabiam agora que além de desgraçado, o mago também era debochado.

O povo estava apático. Suas vidas não eram mais as mesmas. E sobre a resposta desse enigma simpático, estavam todos unidos no centro da cidade.

- A resposta é “abelha”! É lógico, só pode ser “abelha”...

- Mas “abelha”? Por que seria “abelha”, Ênio?

- As abelhas não têm rainhas? Alguém já viu uma abelha rainha morta? Vamos lá dizer ao mago, é certo que é abelha...

Todos se olharam, acharam que a opinião dele deveria ser respeitada. Afinal, o avô do Ênio era conselheiro do Rei Luís III na época da antiga maldição...

Mariu, sabendo disso, recorreu à raça que anteriormente salvaria seu povo, os reis. Chegando lá, viu seu digníssimo presidente também pedindo a mesma informação com o louco senhor de coroa.

- Que queres tu, menino plebeu?
Não se cansaste de rir de mim?
Qual graça que ainda não cometeu?
Essa é uma reunião de chefes de Estado...


- Não, Vossa Majestade, eu só queria saber se poderia ajudar meu povo. Batalhamos muito para termos o que tivemos, não é justo que nos tirem nossas felicidades n'um só aceno.

O rei se pôs a pensar na charada novamente. Olhando para os rostos ansiosos, prontamente respondeu aos dois rapazes.

- Ora, um rei que não morre
E que é vitalício,
Caro plebeuzinho e nobre,
É só o Reinício!


O encanto se desfez, o país se tornou feliz mais uma vez. O mago arrumou suas malas e partiu para outro lugar ainda não desgraçado. Antes, cumprimentou o rei pelo feito. O rei foi aplaudido pelo povo em uma passeata de dois dias. Depois todos cansaram e foram dormir.

O presidente renomearia Luiz VII, Ministro da Segurança Extrafísica. Todos estavam satisfeitos com o rei, ninguém mais caçoava do rei, além de ser, agora, útil, ele conseguia, finalmente, completar suas quadrinhas.

Tempos depois, os jornais exibiam manchetes com fotos de Luiz VII e do mago, juntos, dias antes de ser propagada a maldição. O rei nega veemente qualquer relação com o criminoso. O caso seria melhor investigado pela polícia federal. Aliás, o lugar já tinha um veículo de comunicação e uma polícia federal. Era um presidente muito eficaz...

(Solano Lucena
baseado no poema de Luiz Tatit)

quinta-feira, outubro 07, 2004

"Entra e se senta"

Entra e se senta
Olha pelas janelas
Letrinhas miudinhas
Em pequenininhas parcelas

Curiosidade
Desembaraça o vidro
Estreita seus olhos
E faz sinal de negativo

- Esse não é um poema de ônibus
É um poema de óculos.

(Solano Lucena)

para Mário

Se quintanares soa pouco,
sobreteunome um poema se faz
de um aprendiz por si solto,
mas preso no espelho
catatraz!

(Solano Lucena)

sexta-feira, outubro 01, 2004

Vinte e seis de Outubro

Tudo era muito cinzento, não se parecia em nada com o que nos haviam descrito. Postes jogados, placas que não faziam sentido e cogumelos gigantes habitados por seres pequenos, todos eles iguais, não se conheciam e se riam da nossa busca.

– Nós viemos buscar o dardejante fenômeno de luz para que esse nos esclarecesse outra incrível manifestação divina, essa chamada "Vida". Enfim, viemos encontrar o arco-íris.

Estávamos em dois, eu e meu único amigo. Queríamos chegar ao improvável, com suas cores redesenharmo-nos, e, com o pote de ouro, comprar valiosos presentes para nossas esposas.

O vento contra nós era cada vez mais forte. E o frio fez com que ele não agüentasse: não sobreviveria nem mais um metro.

Olho para frente e vejo minha ambição de chegar ao franco arco-íris: – Vem ser feliz. Vem ter o que teus valores priorizam – olho para um lado, nada vejo. Olho para o outro, nada. Para trás, somente minhas pegadas e o corpo d’um bom amigo morto, que, além de ter sido leal até hoje, ainda me salvaria da fome. Continuei o trajeto, sabia que estava próximo.

E assim foi durante dezenove anos. Agüentando as risadas desses pequenos seres que habitavam cogumelos decadentes. Suportando o frio que ardia em tal solitude. Horas parando, refletindo, pensando se seria mesmo feliz, se era isso mesmo que queria. Até que, finalmente, encontrei algo.

Não o arco-íris, mas uma placa que me fazia sentido. Cresce e aparece, dizia ela. Depois de me dispor a entendê-la, descobri que todas as placas ali eram idênticas, mas, para mim, só aquela tinha valor.

Comecei, então, a planejar melhor meus passos, caminhar devagar, pisar com mais cuidado e certeza. E a cada vilarejo de cogumelos fazer novos amigos. Eles continuam rindo de mim, mas agora rimos todos juntos. Eu desafio o criador da idéia com a minha risada alta. Aliás, são duas coisas que faço muito bem.

(Solano Lucena)