quarta-feira, junho 29, 2005

Centímetro

Adoecia em um quarto vazio. Escorando-se, dividia-se em mofo e rachaduras. Caindo sentado, estendendo os braços. Apertando o corpo contra a parede com força. Diminuindo cada centímetro. Recolhendo as pernas finas de quem não mais se alimentava. Tremulando as mãos como se houvesse algum mal. E havia um mal, a namorada. A namorada ensangüentada queria lhe confidenciar algo. A boca da namorada coberta de coágulos e balas. E beijos. E lágrimas. E palavras silenciadas por homens de capuz branco em noite preta.

Ele adoecia naquele quarto vazio. Um quarto no meio do nada. As paredes eram sua companhia, elas compartilhavam da insanidade, da tristeza de um jovem olhar. Olhar insistente para a porta. No vão, o rastro da claridade se esvaía, se desesperava. Não! Será mais uma vez noite. Os gritos eram camuflados pelo desespero que aquele corpo representava. Conforme a luz do sol diminuía, desaparecia. Desaparecia. Até que sumiu. Os ossos foram diluídos no cimento que arquitetava o quarto. O único vestígio de vida ali era o eco de seus gritos... E os seus gritos insistiam em ecoar.

(Solano Lucena)

Conselho de Mãe

Na primeira vez que pedirem tua mão em casamento, minha filha, não aceite.

(Solano Lucena)

Será o nosso fim?

Sua arquiinimiga conseguiu novamente. Mas não por muito tempo. Ao chegar no templo sagrado, desembainhava sua espada; estava à frente de sua pior ameaça. Ela, a ameaça, havia já lhe dado trabalho em outras ocasiões. Era espadachim e trabalhava para um clã de traidores. Ela havia matado sua mulher e seus filhos. Ele, jurado que os vingaria. Ela era uma das mais poderosas na arte da arma branca. Ele a respeitava.

Olhavam-se fixo. Ela estava em posição de defesa, seu forte, o contra-ataque. Ela possuía um florete guardado na cintura. Era belíssima. A mulher mais bela que já havia visto em toda vida. Era inteligentíssima também. Possivelmente não será essa a última vez que lutariam. Era a mulher que quis fazer de sua vida um inferno. E conseguia...

Em um momento, abaixou sua espada. Ajoelhou-se perante ela. Colocou sua cabeça ao chão e jurou obediência. Afirmou que seria servo. Disse que poderia fazer o que quisesse, apenas pertencê-la o importava. E se expôs como homem aos seus pés.

Ela via desacreditada... Esboçou um sorriso no rosto... E se pôs em posição de ataque. Enquanto escorria sangue, excremento e saliva, o olho direito era mastigado dentro da boca da mulher de dentes brancos. E o olho esquerdo lacrimejante via tudo através de suas pálpebras forçadamente abertas.

(Solano Lucena)

quinta-feira, junho 23, 2005

Decepção

Às vezes sinto uma vontade muito forte de chorar. Muito forte mesmo. Mas raramente eu choro. Muito raro mesmo. Não consigo chorar por outros motivos. Só choro de decepção.

(Solano Lucena)

Uma casa, um apartamento, um casamento, um casal

Fazia frio do lado de fora, o namorado trouxe o grande casaco. Um beijo e um sorriso e caminhavam abraçados e iam até o carro. Ela tinha dificuldades de pôr o cinto e ele a ajudou. Estavam quase na esquina e ela lembrou: a cuca para o café da manhã!

A mãe dele era sempre tão atenciosa. Ela a chamava de filha loura. A filha loura pegou, então, o pacote da cuca, correu até a calçada do lado oposto. Acenou para as senhoras da janela e entrou no carro de novo. Esse cinto estragou? Ele não tá prendendo!

As chaves de casa eram jogadas em cima da mesa como um grito de liberdade, estou onde sempre quis estar. Ela colocava a cuca no armário, ele preparava o banho. As toalhas? Que que tem? Não estão na gaveta. Ah, entrou água na cozinha, tive que enxugá-la. Tão estendidas ali. Ele beijava sua boca como um grito de liberdade, mais uma vez estava onde sempre quis estar.

Quem diria. Ela. Se ela tivesse três amigas e um namorado antes, ela magoaria as três e esfaquearia o coitado. Era incrível o poder de se desentender com os outros. O olhar blasé, o sorriso tímido, as poucas palavras sempre certeiras, sua feiúra estrategicamente confortante, tudo nela o fazia feliz. Enchia a boca para dizer seu nome, estou casado com a. Ele também. Quem diria. Casado. E parece que o caso é mais grave, ele estava apaixonado.

E ela, mesmo melancólica, mesmo achando que a vida poderia ser um pouco mais fácil, estava satisfeita até. O namorado era bonito, mas não era lindo. O carro era novo, mas não era do ano. O apartamento era espaçoso, mas não era próprio. Ela tinha um namorado, um carro, um apartamento e um emprego. Parece que tudo estava dando certo. Quem sabe ela esteja apaixonada por si mesma nesse momento... No exato momento que ele tomava banho.

(Solano Lucena)

domingo, junho 19, 2005

Béatrice

Carro preto parava na praça. Gente da cidade grande descia da caravana. Chegava em bando. Homens, mulheres, crianças, anões, cameramans. Viemos fazer um filme! A cidade de mil pessoas, que não tinha cinema nem teatro, os recebia de braços abertos. E tudo era filmado.

A atriz principal era adorada pelos homens de lá. O mocinho do filme havia sido homenageado pelo prefeito, recebendo uma chave de ouro que abriria qualquer porta. Por que ele iria quer entrar em alguma casa de nossa cidade? Sei lá. E o vilão era, mais uma vez, escoltado.

Todos se hospedaram no mesmo hotel, cortesia do prefeito também. Essa é Béatrice, ela lhe servirá enquanto estiverem aqui. Béatrice, cabelos curtos, ruivos, olhos verdes, rostinho de camponesa ingênua, sentava-se à mesa e perguntava em voz doce: do que se trata o filme? O diretor respondia sorridente desabotoando a camisa e mostrando uma câmera para a moça: é sobre você, meu anjo, sobre você...

No poste de luz estava o cartaz, procura-se zumbi para fazer o papel de magrelo com cabeça raspada. Havia uma fila que saía da cidade para fazer o teste. Zumbis de toda parte vieram interessados na fama. O que ganhou era da produção, diziam alguns desapontados com a derrota, para uma câmera ali.

As bailarinas dançavam a música de abertura. Os letrados pensavam o que colocar nos créditos. Os coadjuvantes ensaiavam os onze segundos que apareceriam. E os atores faziam sucesso já, muito sucesso.

No banco, o diretor tomava seu café com os patrocinadores e alguns cameramans.

- Então, vocês têm esse banco há tempo? – perguntou.

- Faz, sim. Era do pai de meu avô - respondeu um homem velho simpático.

- Você é bancário? Tem cara de padre...

- Sou bancário, sim, senhor - respondeu o homem soltando uma gostosa gargalhada.

- Pois, a partir de agora, serás padre, entendeu? Padre! Tens uma cara de padre...

Eis que chega o grande dia, a primeira gravação. Estrada da Colina das Mostardas, nove e meia da manhã. Estavam todos lá com suas bandeirinhas e fotos do elenco. Mas demoraram muito. Será que é normal em filmes o atraso? O prefeito estava impaciente já. Mandou chamar toda a produção do longa-metragem.

Ninguém. Não havia ninguém nos quartos. Nem nos aposentos do hotel. Até a caravana havia sumido. No quarto do diretor, as cobertas estavam todas pelo chão, as cortinas estavam fechadas, as paredes pintadas e havia muitos papéis sobre a cama. Organizados e grampeados. Todos com um insistente título, “Béatrice, o destino é a última escolha de nossas vidas”...

(Solano Lucena)

Prazer, a palavra mágica

Não existe palavra menos compreendida no nosso vocabulário que "prazer". Ela é única. Possuída por cada pessoa. Prazer é algo tão pessoal que não assimilamos da mesma forma. Há quem considere o cúmulo do prazer morder bala de iogurte, enquanto o outro gosta de arrancar pernas e braços humanos com uma motoserra. Tudo pode ser prazeroso. Videogame, Sprite gelada, polenta frita, ventilador, disco novo.

Além dessas, claro, prazer tem o formato sexual também. "Conforto e prazer ao seu alcance", saxofone ao fundo e um letreiro que dá ênfase no endereço. Deve ter alguém que sente prazer só de ver propagandas de motel. Outros preferem as políticas. Roberto Carlos, banho de açude, girassol, liquidificador, torta russa, roupa combinando.

Como falar de prazeres com alguém, então? As pessoas não entendem a mesma coisa que você. O que será que a Angelina Jolie acha prazeroso? E a Fernanda Lima? E o Palocci? Tanto faz o Palocci, não me seria prazeroso saber...

Não gosto de tudo. Nem de balas de iogurte nem de Antônio Palocci nem de propagandas bizarras. Não acho grande coisa. Embora, nunca tenha cortado alguém com uma motoserra... Agora, uma coisa que eu acho muito prazeroso, muito mesmo, é acabar um texto sem propósito. Meu Deus, como é bom...

(Solano Lucena)

Quando a Terra ainda não era redonda

As Cores

A primeira impressão que teve é de que era a mulher de sua vida. Manuela tinha lindos cachos dourados e um cativante sorriso. Sua pele era macia e branca como o algodão. Seus olhos eram grandes e verdes como o mar e sua imensidão. Mas suas mãos... Bom, suas mãos não pareciam mãos dignas de damas suntuosas de uma poesia. Cuidava de seu jardim todos os dias, nomeando cada flor e inseto. Cuidava sozinha de sua mãe doente cuidando sozinha de seu pai dolente e do seu irmão, Roberto.

A primeira impressão que teve é de que era a mulher de sua vida. Após tê-la levado até sua casa na volta da escola, resolveu pedir a mão da garota para seu pai. Um homem de ar sério e poucas expressões desceu as escadarias para falar com o rapaz. Manuela ouvia ansiosa por detrás da porta de seu quarto.

Não seriam nove meses úteis se não houvesse um casamento aqui. Filha minha não é mãe solteira, dizia o pai desolado. Sua caçula se casaria grávida com o homem do elegante carro e nojento ar amistoso. Isso lhe causava imenso desgosto. Mas ela se casava por amor.

A Sutura

A primeira impressão que teve é de que era a mulher de sua vida. Cecília era, acima de tudo, alegre. Pintava lindas telas vivas e sobrevivia de seu trabalho. Era independente e se dizia satisfeita na vida, solteira, mas nunca esquecida.

A primeira impressão que teve é de que era a mulher de sua vida. Algum tempo depois, um jovem, dois anos mais novo que Cecília, portando apenas um coração alheio e uma má índole, a engravida e foge. A família do rapaz insiste em escondê-lo como um covarde.

Cecília era moça que se dizia desgraçada pela vida. Seu pai teria se separado da mãe e vivido com um homem numa interiorana cidade, pagaria uma pensão até seus seis anos de idade. Sua mãe, Manuela, escolheu a vida mariola. Alimentava seus filhos com a marmita que recebia do marido. Marido que lhe batia. Batia-lhe, pois se sentia no direito, já que pagava. Pagava e estava em dia. Só que pagaria com a vida mais tarde. Poucos amigos culparam Manuela. Logo ela que nunca mais os filhos viu.

As Dúvidas

A primeira impressão que teve é de que era a mulher de sua vida. Uma linda bailarina girava como giravam seus verdes olhos marejados ao acompanhá-la. N’um instante, repregadas cortinas se fecham contando ao espectador que o espetáculo morreu, como morre o dia todos os dias, no cansaço que o escondeu.

A primeira impressão que teve é de que era a mulher de sua vida. Quando a dança teve seu fim, a reconheceu n’um tumultuado camarim. Sua graça era Rita, sua fita entregava. Rita tira as sapatilhas. Caminha até o móvel descalçada. Descansa estirada em repouso. Abre seus olhos e amanhece um sorriso – seu noivo. Beijos de amor. Os verdes olhos marejados que antes acompanhavam, procuravam a porta que seria batida sem força. Clique.

Miguel era rapaz estudioso. Cuidava de Cecília e se empenhava para entrar na faculdade de Direito. Cecília nunca reconheceu o talento do moço para a arte. Logo cedo, Miguel se apaixonou pela música, mas teve de abandonar a composição e a flauta transversa no meio do caminho. A eloqüência seria agora sua arte. A vitória, sua música. A reputação, sua paixão.

Depois do insucesso com a bailarina, Miguel nunca mais amou ninguém. Nunca teve vontade de ter um filho. Nunca mais sentiu dor também. Mas guardava, daquela noite, um espartilho.

Pinturas escorrem, flores morrem, músicas acabam, um amor geme. E por mais supliciadas que sejam, só o que restou de suas vidas, é o leme.

(Solano Lucena)

quinta-feira, junho 16, 2005

Lindíssima

A pele é macia, alva, delicada. Percorro sutilmente com a mão a tez de teu rosto, tranco meus olhos nas pálpebras que te cercam, não há ponto em ti a não ser admirado. Tua beleza resplandece meus sentidos. És deusa em teu formato. Teu perfume edifica o sentimento despejante. És salvação para mim. És salvação para tal ferida. Dolente. O meu coração... Grito teu nome a sete cantos. Que todos saibam do resplendor. Que todos possam por um segundo ter a felicidade associada à tua imagem. Tua imagem perfeita.

Mas o primeiro que passa arranca-te a gérbera dos cabelos. O segundo tomba em ti, pois olhava o chão somente... O terceiro, é pior, te despedaça inteira como flor. Mulher. Ao chão. A semente.

Seco-me as lágrimas. Recolho-te com cuidado. Posiciono-te no altar de tua vocação. Afasto-me de tuas certezas. E silencio em meus lábios o segredo que é tua existência: o mundo não é bom o bastante para te conhecer. Não há hino que te louve, não há beleza que chegue aos teus pés. És lindíssima... Afinal, o que em ti por mim não é sonhado?

(Solano Lucena)

Casos

Caso chova, leve o guarda-chuva.
Caso faça sol, desodorante.
Caso chova pedra, telhado.
Caso faça mais sol, creme hidratante.
Caso suba barranco, tênis.
Caso vá a alguma festa, táxi.
Caso se apaixone, camisinha.
Caso tenha idéias, cadernetinha.
Caso sinta pena, niqueleira.
Caso se esqueça de algo, celular.
Caso tenha medo, pai nosso.
Caso sinta-se entediado, carpinejar.
Caso tenha sede, com licença.
Caso sejam poucas as mãos, mochilão.
Caso cante no videokê, amapola.
Caso o dia esteja frio, ceroula.
Caso sinta-se sozinho, eu.
Caso haja um encontro, camisa de flanela.
Caso alguém te conheça, sorria.
Caso seja no cinema, pague o cinema para ela.
Caso o mundo seja cruel, blogescuro.
Caso haja insônia, suco de maracujá.
Caso seja demais, engov, sonrisal.
Caso haja problemas, ajuda profissional.
Caso alguém bata na porta, olho mágico.
Caso precise de conselho, melhor amigo.
Caso conte uma história, momentos trágicos.
Caso for esquecer algo, o meu umbigo.
Caso se dê bem na vida, parabéns.
Caso for falar de música, tom jobim.
Caso esteja fraco, apaixonada.
Caso esteja forte, namorada.
Caso não haja poesia, dicionário de rimas.
Caso o dia seja ruim, vá dormir.
Caso for dormir, que seja bom.
Caso sinta falta de algo, celular.
Caso chova canivete, benção.
Caso não faça sol, pode levar o meu.
Caso esteja cansado de mim, pense.
Caso esteja infeliz lá, volte.
Caso pense em voltar, a chave de casa. Esta cama sempre estará te esperando, como o quarto, os versos, o ninho, os passarinhos, a cadeira vazia e o espaço vão no meio dos meus braços.

(Solano Lucena)

Darth Vader e o pé-de-feijão

Na terra de heróis cabeludos carregando seus violões elétricos, Darth Vader vende cápsulas que na verdade é uma passagem secreta para a liberdade. Tem um arco-íris na janela e eu danço pelado. Um amigo traz o colar da minha mãe, a gente enrola e faz bolhinhas de sabão. Sentamos na cama e pensamos onde que fica o Texas. Quando íamos ser presos pela ditadura da caixa de sucrilhos, alguém come no café os soldados de marshmallow... Aí, cansamos de toda essa coisa maluca. Desligamos o rádio e damos adeus para a Lúcia. Lúcia está no céu com seus diamantes. E nós aqui, com fome de chocolate, pão, água e açúcar. Acampados na carne.

(Solano Lucena)

domingo, junho 12, 2005

Caderno de Linhas

Um caderno é muito importante para a vida de uma pessoa. Ainda mais um caderno de linhas. É lá que guardamos os segredos que queríamos muito contar p’ra alguém, mas não podemos porque é segredo, né? Se o caderno não tivesse linhas, eles vazariam pela bolsa toda e não seriam mais segredo.

É n’um caderno de linhas que anotamos as coisas que deveríamos sempre saber. Se o caderno não tivesse linhas, essas coisas poderiam sair voando pelas páginas, pelo ar, e elas saberiam tudo que não poderíamos nunca esquecer.

É n’um caderno de linhas que começamos a escrever nossas cartas, bilhetes, poemas. Se o caderno não tivesse linhas, nunca chegaria onde quero chegar. O caderno de linhas é importante porque nunca começa no branco do papel. As pautas sinalizam o tempo, o espaço e organizam as idéias.

Espero que sejas amigo de todos os cadernos de linhas que conheceres na vida. Até porque, nos dias de hoje, temos certeza que quem escreve certo por linhas tortas, ainda tem muito a melhorar.

(Solano Lucena)

Seja feliz

Não quero receber amor sem dá-lo. Se fosse um jogo de duas portas, amar ou ser amado?, não há dúvidas que escolheria amar. Abriria a primeira porta e iria parar n’um imenso jardim, de gramados, frutos e lago. Lá teria alguém a me fazer inseguro, apaixonado, esperançoso, como se fosse, assim, tão simples – essa pessoa saberia que, na verdade, é. Estaria ela sentada bordando um cachecol para o frio que pairaria sobre o jardim. O frio simbolizaria minha solitude e o cachecol não seria para meu pescoço. Quando voltasse a primavera e meus olhos se enchessem de novos tons, alguém montado em uma abóbora ou um cavalo branco levaria essa pessoa para longe do meu ladinho. Os tons da minha voz não seriam audíveis em sussurros. Mas nas letras da legenda do programa apareceria: s, e, j, a, f, e, l, i e z. E, ainda assim, eu confirmaria ao vivo para todo o país, prefiro amar a ser amado.

Que ninguém sinta por mim o que sinto. É bonito quando refletido com cautela, no espelho do quarto, no vidro da janela. Mas a imagem funda de quem sofre recolhido, de quem vê felicidade n’uma rosa, de quem encosta boca na boca d’uma intrépida miragem, essa imagem, essa imagem é horrorosa.

(Solano Lucena)

Eu tenho

Um homem de colete amassado e bermuda surrada entra no ônibus. Ao ser indagado pelo trocador curioso sobre qual método de pagamento utilizaria para cumprir sua passagem, o homem disse:

- Sinto muito, senhor cobrador, mas não tenho dinheiro. Será que posso passar por debaixo da roleta?

O cobrador parecia ter se aborrecido com aquilo dito pelo homem. O xingava e o humilhava na frente dos muitos passageiros que se riam.

- Porra, será que tu não tem vergonha na cara, não?

- Sim, vergonha eu tenho, senhor, eu só não tenho dinheiro.

O funcionário do ônibus levanta os braços e começa a reclamar alto. Ria também. Diz ser um absurdo e que o homem não tinha a mínima consideração com quem acordava cedo para viver o batente oito horas diárias por um salário mínimo no dia 30.

- Mas consideração com o trabalhador, eu tenho, senhor, eu só não tenho dinheiro.

- O que eu faço com um desses, Marcão? – dirigindo-se ao motorista também sorrindo.

- Quer que eu chame o fiscal ali?

- Chama.

O fiscal entra no carro e sob o olhar atento dos outros passageiros que olhavam para o pedinte com raiva, o pergunta:

- Qual teu nome? Tu vai p’ra onde? Otávio, será que tu não tem respeito com quem tá dando duro para chegar na hora no escritório, na aula, na fábrica? Será que tu não tem respeito por quem resolve levar a vida a sério, ao invés de se divertir passeando de ônibus?

Abaixando a cabeça e falando com uma voz fina, o homem diz:

- Respeito eu tenho, senhor, eu só não tenho dinheiro.

- Ele é meio problemático, né? (os três funcionários da companhia de transporte público riem) Deixa o pelado ir até o centro...

O homem levantou a cabeça e disse:

- Se olhares bem, verás que roupas eu tenho, senhor, eu só não tenho dinheiro.

Quando o fiscal olha de novo para trás, a cabeça já estava de novo onde todos ali queriam que estivesse. O homem pôde passar pela roleta e ir até o centro.

O cobrador ainda iria dar uma última cutucada.

- Conseguiu, hein? Feliz agora, pelado?

Indagado, levanta a cabeça e olha firme para aquele homem com o crachá pendurado na camisa:

- Feliz eu já sou, senhor. Eu só não tinha certeza.

(Solano Lucena)

quinta-feira, junho 09, 2005

O Mundo Mágico de Solano

Eu não tinha o que fazer. Estava triste mesmo. Pois é. Daí, eu peguei toda a argila e madeira que tinha em casa e criei minha maior criação e contribuição para esse mundo, com certeza: um planeta só p'ra mim! Só eu viveria nele. Só eu. E talvez uma faxineira possa aparecer por lá quando as coisas estiverem muito difíceis. Meu planeta já está pronto dentro da minha garagem, só falta pôr em órbita. Mas antes, acho que eu devia pensar no que vai ou não vai nele.

Pois bem... Chico Buarque sim. Mini-dicionário Luft também. Carregador de celular não. Não tenho mais celular. Não quero mais ter também. E se tiver, não o quero carregado... Crime e Castigo vai também. Talvez a solidão no planeta me motive a lê-lo. O Pequeno Príncipe p'ra mim saber como agir no meu mundinho. E meu cartão de assinante da Folha da Manhã para sempre estar por dentro em caso de eventuais visitas.

Que mais...? Minha máquina de escrever! Quero que quando meus amigos me virem de luneta, pensem: "Uau! O Solano queria e conseguiu mesmo!". E uma máquina de escrever dá todo esse charme Nelson Rodrigues. Bem lembrado.

Que mais...? Não sei. Acho que só. É... Acho que se levar mais coisas, não poderei acompanhar minha evolução dentro de minha própria proposta inicial. Tá, é isso, então. Ah, o Toddy Pronto! Como pude esquecer? Agora, sim.

Sejam bem-vindos à Solanolândia, terra de seres melancólicos e depressivos vivendo o cotidiano como dramáticas personagens de uma poesia opaca. Meu Mundo Mágico lhe aguarda para a aventura que é aventurar-se na desventura do singular.

Adeus, amiguinhos!

(Solano Lucena)

Bilhetinho de Geladeira

Rasgam-se sedas
Em um momento amargo
Veste imunda, sórdida, histérica

Ele não vale o prazer que tem; e sofrimentos não devaneiam o espírito.

Falas confessoras de quem um dia soube o que queria

Nós contra um mundo fraco
Pregando afagos para nos atraiçoar
Com que cara me olhas?
Em que pessoa nos descreve?
Com palavras desabotoadas do começo ao fim
Se não sabes, amor, o que é amar
Ao menos saiba, bem, o que queres de mim

(Solano Lucena)

Apego material ou o problema que queria resolver sozinho

Foi-se embora o celular, o caderno, os filmes que pegou na locadora, o "1984" que emprestou p'ruma colega, o dinheiro da dentista, o saco de fichas de ônibus, o guarda-chuva, o porta-óculos escuro, as canetas, a cartela de Benegripe, o nariz de palhaço, os textos inacabados, o número do telefone de amigos, os documentos do carro, a mochila.

Sobrou sua vida. Dois braços estendidos. Um deles segurava a chave de casa. Enquanto a vida só queria entrar em casa logo, os braços queriam muito poder correr atrás de tudo que se ia.

(Solano Lucena)

domingo, junho 05, 2005

Adriana abre a janela

(ouvindo Rage Against the Machine)

Acordara cedo para ir à escola, mas nem suspeitava que aquela manhã era uma manhã de sábado. Foi só quando sua mãe lhe avisou, que resolveu, então, voltar para o quarto. Adriana não tinha mais o que fazer. Resolveu abrir a janela para que se iniciasse o dia, não tinha sono.

Levantou vagarosamente o vidro pesado, sentindo o vento frio que vinha da rua. Ao se deparar com a veneziana, seu celular tocou o tema da Pantera Cor-de-rosa. Adriana atendeu seu namorado bêbado, que queria reclamar de novo sobre a falta de vontade dela em ir à festas com ele, queria dizer a ela como era mesquinha, pequena, como existiam outras meninas mais interessantes, que sabiam conversar, diferente dela. Disse também que estava enojado e... Ela resolveu desligar para não ter de se chatear mais. Abriu a veneziana. O dia estava nublado.

A vista de seu quarto era o subúrbio da cidade onde morava. E ela odiava. Detestava ver policiais entrando armados nas casas das pessoas pobrinhas. Outras com jeito mal-encarado a olhando de uma forma diferente. Não gostava que sua campainha fosse tocada. Sentia pena de quem pedia, mas não dava nada também. Sentia nojo de quem roubava, pena de morte para vândalos, por que não? Era melhor fechar a janela, ler o Vidas Secas para a escola e ouvir aquela música do Rage Against the Machine que adorava, Renegades of Funk.

O que aconteceu ali foi que uma bala perdida feriu uma moradora do condomínio. E que a vida de Adriana nunca mais foi a mesma.

(Solano Lucena)

Adriana abre a janela

(ouvindo Smashing Pumpkins)

Acordara cedo para ir à escola, mas nem suspeitava que aquela manhã era uma manhã de sábado. Foi só quando sua mãe lhe avisou, que resolveu, então, voltar para o quarto. Adriana não tinha mais o que fazer. Resolveu abrir a janela para que se iniciasse o dia, não tinha sono.

Levantou vagarosamente o vidro pesado, sentindo o vento frio que vinha da rua. Ao se deparar com a veneziana, viu o panfleto da festa de ontem. Festa que não compareceu. Talvez fosse por isso que seu celular não tocava. Onde estava mesmo? Fechou os olhos. Abriu a veneziana... O dia estava nublado.

A vista de seu quarto era outros prédios. Um monte deles. Ela gostava disso, chamava de "sub-lar". Gostava da cultura do podre, do sujo da cidade. E ouvia uma música que o nome era “Disarm”. Foi aí, olhando para os detalhes abundantes em sua frente, que lhe deu uma vontade estranha de equilibrar-se na janela. Não só ver, mas sentir a altura do oitavo andar. A geometria. O infinito. Pôr os seus pés para fora e com a cabeça vazia fazer movimentos circulares, como se estivesse possuída. Ou livre, sei lá. Mas aquilo era ainda pouco.

O que aconteceu ali foi que um corpo se jogou lá de cima em um carro importado que estava aqui estacionado. E que a vida de Adriana nunca mais foi a mesma.

(Solano Lucena)

Adriana abre a janela

(ouvindo Portishead)

Acordara cedo para ir à escola, mas nem suspeitava que aquela manhã era uma manhã de sábado. Foi só quando sua mãe lhe avisou, que resolveu, então, voltar para o quarto. Adriana não tinha mais o que fazer. Resolveu abrir a janela para que se iniciasse o dia, não tinha sono.

Levantou vagarosamente o vidro pesado, sentindo o vento frio que vinha da rua. Ao se deparar com a veneziana, resolveu pôr um blusão, pois estava ventando forte. Abriu então a veneziana, mas fechava novamente o vidro. O dia estava nublado.

A vista de seu quarto era uma rua sem saída repleta de mansões. Calçada de paralelepípedo. Carros antigos. Ela gostava, um dia moraria entre aqueles muros. Em uma das casas, um homem a espiava pela sacada. Robe vinho e cachimbo. Ela fingia que não via o curioso, que aos poucos se agachava para garantir o segredo da espreitada.

Adriana desabotoava o blusão vagarosamente. Um a um. Pronto, estava só de camisola novamente. Dançava para ele ao som de Portishead. E não demoraria muito para estar nua. Ela se divertia bebendo uma garrafa de licor que antes servia de bibelô na sala de estar. Sorria para o homem. Que a brindava com o licor de mesmo rótulo.

O que aconteceu ali foi um estupro de uma moça de dezessete anos. E que a vida de Adriana nunca mais foi a mesma.

(Solano Lucena)

Adriana abre a janela

(som desligado)

Acordara cedo para ir à escola, mas nem suspeitava que aquela manhã era uma manhã de sábado. Foi só quando sua mãe lhe avisou, que resolveu, então, voltar para o quarto. Adriana não tinha mais o que fazer. Resolveu abrir a janela para que se iniciasse o dia, não tinha sono.

Levantou vagarosamente o vidro pesado, sentindo o vento frio que vinha da rua. Ao se deparar com a veneziana, desistiu de abrir a janela. Estava com os pés e as mãos geladas, melhor ir ver televisão com o cobertor enrolado.

Ficou na frente do televisor por quatro horas.

Adriana morreu aos noventa anos, seu coração parou. Na sua vida nunca havia acontecido uma tragédia sequer. Apenas o fato de nunca ter encontrado uma companhia talvez. Ela não saía de casa. E os vizinhos falavam. É só ela, sua TV e seus discos de rock...

(Solano Lucena)

Sombrosa Inspiração

Atirado sobre a velha escrivaninha com tinteiro, um velho escrivão tintava a morte duas vezes no segundo. As lágrimas corriam até a carta que precisava ser escrita.

O som do piano bem ao fundo era certeiro, tocava um coração silenciosamente moribundo, entristecia a obra de uma poesia culposamente decaída.

Alguém vinha até a porta saber que havia n’outro lado, não ouviam o dissabor de um grito reprimido, não sabiam nada do soluço. O conserto do mezanino tomava a sala e invadia as palavras do papel.

Amor, a sorte é curta
A vida é breve
Desculpa pelas desculpas n’um quadrado
Morrer de amor
Meu amor, é ter-se contradito
E nessa vontade, me debruço

Foi-se embora com certezas e planos bem-escondidos debaixo do chapéu.

(Solano Lucena)

quinta-feira, junho 02, 2005

Horizontes

Um ancião segurava uma vela. Corcunda, caminhava por um corredor escuro. Nesse corredor, mais velas nas paredes. Ele seguia, de vela em vela, as acendendo... De vela em vela. De vela em vela. Uma por uma. Pacientemente. Ele seguia. Curtos passos, silenciosas palavras. O lugar, antes escuro, se tornava claro. Sim, se tornava claro. A última vela seria fixada com sua própria cera.

E, então, iluminada era a casa! E o que se via? Uma imagem de homem no altar! E como era esse homem? Era velho e parecia bom, parecia acreditar em muitas coisas! Esse homem era ele? Esse homem era ele!

Sim, o lugar se tornava claro e esse homem era ele! Era uma antiga dívida, e esse homem era ele. Promessa para si quando jovem. Ele o louvava! Pulava sobre um pé e gritava palavras, palavras indecifráveis! Oraumgaê! Hamnerum! Catharam! Hahahahaha! Ria alto e parecia satisfeito! Esse homem era ele! Era ele! Esse homem era ele!

N’um segundo, fez silêncio. Percorria as velas. Assoprava... Uma por uma. Vela por vela. Vela por vela! Batia no peito, como se fizesse um sinal. O lugar era escuro de repente. Trancava bem a porta do corredor. E fazia-se corcunda novamente.

Uma porta. Do lado de dentro, tudo que ele acreditava. Fora, estava. A crença somente era praticada n’um degrau abaixo. Não havia perguntas ou respostas. Só imagem. E, tudo que havia nessa imagem, era a perfeição.

(Solano Lucena)

Os Sonhos da Dona Vinha

Praia, férias, eram cinco ou seis horas da manhã, o dia nascia bonito e ainda fazia aquele friozinho gostoso, bom de ficar demorando embaixo das cobertas... Até que eu ouvia os passos da minha mãe vindo até o meu quarto. Vai buscar leite e farinha p'ro sonho, e agora! Que que era isso? Eu reclamava, claro, ameaçava, óbvio, me revirava, mas sempre acabava indo... Com a pior cara de sono possível, uma calça de moletom furada, um par de havaianas e um par de meias que não fazia par. Essa era a receita da manhã.

Minha mãe fazia sonhos na praia. A gente acordava junto com o sol, quase todos os dias. E, na volta do mercado, eu não tinha mais sono, me sentava ao lado da mesa. Ficava tomando nescau e olhando a minha mãe preparar a massa. Batia, sovava, socava, pegava o rolo e deixava ela fininha como a toalha de mesa. Aí, ela usava os copos de requeijão p'ra separar a massa em círculos. Um por um. E eles ficavam redondinhos redondinhos, incrível.

Enquanto isso, eu explicava p'ra ela onde era o décimo planeta do sistema solar que eles haviam descoberto. E ela me contava sobre as roupas que ela bordava quando tinha a minha idade. E eu dizia tudo o que eu sabia sobre os países da União Soviética. E a gente planejava juntos como seria a nossa viagem p'ra Rússia...

Depois, minha mãe recheava os sonhos de várias coisas. Chocolate, banana com canela, doce-de-leite, goiabada, creme de maçã, melado, creme creme mesmo. Isso depois dos nossos sonhos serem fritos. Nós organizávamos eles nas cestas, sabor por sabor.

Eu pegava um sonho p'ra quando voltasse, e a gente saía pelas casas da praia vendendo, eu e a minha mãe. Não vou esquecer tão cedo de como as pessoas ficavam contentes quando chegávamos. Nosso sonho era bom. E a gente andava duas ou três quadras e já tava vazia a cesta. Só sobrava o açúcar que eu lambuzava os dedos comendo. A minha mãe ficava feliz quando a gente conseguia ganhar dinheiro com nossos sonhos. E, se ela ficava, eu também ficava. A gente era uma equipe. E isso era p’ra sempre.

- Amanhã tu me acorda bem cedão, tá, mãe? Temos muito trabalho a fazer.

- Claro. Pode deixar...

(Solano Lucena)