terça-feira, agosto 02, 2005

Moinhos

Não estava a casa ao pé da fonte. Ela quase tocava o céu com a chaminé e a chuva não a alcançava. A casa tinha três quartos p’ra você, esperando seu retorno, te desejando boas-vindas. Onde quer que você esteja, você voltará, é sabido. Na mesa, três crianças lindas tomam sopa de letrinhas. O chão era limpo e espelhado. Espelhava o teto que espelhava o chão que espelhava o céu. No alto das cortinas, um sonho amadurecia. Queria voar para bem longe, para onde as lágrimas fossem preciosas, para onde as armas fossem douradas. E quando estiver longe, longe da casa, longe das crianças, longe de você, perto das lágrimas, perto das armas, perto da possibilidade de realizar um sonho, cegar. Cegar e não ver que, o tempo todo, era a fonte que estava ao pé da casa.

(Solano Lucena)

De Preto

Sim, não pediria p’ra ficar, se não fosse. Não imaginava acordar ao te ouvir, tais palavras. Talvez exista uma chance ainda. Olhar atrás de ti, ver coisas que colori. Onde estava minha cabeça ao imaginar ser eterno? Por que não aprendi que a eternidade não é ser invencível? Onde é que decidimos pelo pedaço bom das lembranças? Por que teu vulto insiste em bater na porta do meu quarto? Teu vulto insiste em bater na porta do meu quarto... Quando abro, ele me chama. E, ao pé d’ouvido, vem me dizer, suavemente, com voz doce e sorrateira, que eu morri.

(Solano Lucena)

Perigoso

Ele fez uma cara de mal, foi até o bar, comprou cigarro. Pôs-se a sentar no capô do carro, queria ver bem as meninas passar. Era verão, as roupas eram poucas. Era Brasil, o rebolado era muito. De repente, do seu lado, se encosta um cara esquisito. Esquisito para ele, camisa xadrez, sem tatuagens, sem boné, sem óculos escuros, sem gírias, sem barba. Com uma lata de cerveja na mão, ele queria fazer amizade. Dizia que não gostava de cerveja, mas, como muitos bebiam ali, resolvera que aprenderia a tomá-las, as cervejas, todas elas.

Mas o cara do cigarro não queria conversar, nem se conheciam. Mas o outro insistia em puxar assunto: foi o futebol, foi o novo governo, foi a novela, foi o Big Brother, foi o último censo do IBGE, nada. O cara do cigarro nem o olhava nos olhos, fazia aquele começo de riso, uma expiração nasal que só ficava naquilo.

Aos poucos, o cara esquisito da cerveja foi desistindo, foi baixando a cabeça e afastando-se do capô. Caminhava lentamente até a mesa vazia do bar, deixou ali sua latinha ainda cheia. Talvez tenha se formado errado. Talvez seu mundo não seja aquele de pessoas certas que certamente se sentem ameaçadas. Talvez não devesse rotular. Talvez não nascera para brilhar. Mas o que estará errado, será que é sua boa educação, ou será que é seu visual de bom moço?

(Solano Lucena)