quarta-feira, março 30, 2005

O Silêncio de uma Manhã Comercial

Em uma escada suja, dormia um homem úmido servindo de alvo para a chuva que entristecia a noite d'uma capital do país. Sobre si, um cobertor furado e velho, um boné do New York Yankees e o uniforme de um antigo, tradicional e recém falido colégio.

Em um céu risonho, dormia nossa pátria-mãe gentil, a luz do sol fazia o cartão-postal da cidade, e a noite ignorante dava a certeza de que se trata mesmo do Brasil. A vista era deplorável, eram seres humanos dormindo um sobre o outro com a esperança de se esquentar. Um único do grupo que guardava uma garrafa de aguardente sobre os braços, era o que dava uma ainda pior impressão por quem ali passava.

Em uma escada úmida, dormia um homem sujo. O odor da cachaça era forte e ele trazia jovens sorridentes por um novo cartão-postal. Cinco garotos vieram retratar a escada imunda e o homem úmido para colocar em seus inúteis fotologues. Cruéis dizeres nas legendas mostravam que não havia respeito pela precariedade da situação daquele irmãozinho. Um mendigo sorridente era traduzido por eles com uma frase esculachada. Sua desnatureza era visível nos rostos pintados ou nas roupas compridas. O preconceito florescia nas mentes em abundância. Sobre o céu de uma pátria-mãe, dormia nosso risonho gentil.

Sobre a sujeira da umidade, feridas, sangue, vômito, vermes, gente.
Sobre a escadaria da humanidade, homens com pedaços de paus, ferros e tijolos agrediam alguém deitado na escória da covardia. Vermelho sangue e chuva incolor se contrastavam em tons indesejáveis. Os únicos sons decifráveis não eram gemidos ou urros, não era o baque dos murros, o único som ouvido era o dom seguido de alguém que se divertia com tanta sangria. Que, ao ver a anemia, a anomalia, a tirania, sua necrolatria brotava em uma quase alegria.

E na mente abundante do poeta, o preconceito... de um jeito florescia.

(Solano Lucena)

Morrer com dignidade

Quem assistiu aos premiadíssimos "Mar Adentro" (de Alejandro Aménabar) ou "Menina de Ouro" (do Clint Eastwood) pôde se ver em uma situação delicada: sem saber a quem dar razão, já que poucos de nós temos uma opinião formada sobre; os filmes tratam de eutanásia, um assunto delicado, atual, dono de muitas polêmicas e que volta à tona graças a estas duas excelentes obras da indústria cinematográfica mundial.

Bom, antes de qualquer coisa, também defendo a eutanásia como um direito legal, ainda que a considere imoral, uma violência ao nosso objetivo natural de sobreviver...

Eutanásia é uma prática fatal que visa poupar a dor de quem está a sofrer. Se, por um lado, falo da liberdade humana, poder escolher entre viver assumindo necessidades ou não, por outro, entendo o egoísmo ético das famílias e até concordo com elas ao me colocar na mesma situação. Acredito no sucesso da legalização da eutanásia passiva, sim, seguindo o exemplo do que acontece no Uruguai, na Alemanha, na França, na Holanda e na Bélgica - onde tudo pode ser feito com a decisão do paciente e com a supervisão médica -, acredito também que o que nos torna seres humanos é o fato de sermos dotados de razão e, conseqüentemente, responsáveis por nossos defeitos e virtudes. Mas confesso que, diante de tal situação, me identifico muito mais com o oprimido olhar esperançoso que com essa nova visão libertária. Ainda que morrer seja só uma parte de qualquer vida, optar por ela me parece desacreditar em toda vitória até então. Quando o enfermo olha para quem o cuida e diz que seu maior desejo é o não-viver, ele nega todo o sacrifício deste e traz ao ambiente (casa, hospital, sala de cinema, nossa mente) a morte como uma melancólica solução para a vida mal-vivida. Eu realmente encaro a “morte digna” como um suicídio, uma realidade humana, claro, mas também o vitimado de uma ação social, dona de preconceito e pena. E não falemos em Deus...

Mas, voltando ao assunto filmes, é admirável ver a grandeza de personagens compactuando com a morte calma como uma saída para a dor de seu ente, politizadamente ou não. A ousadia (ousadia?) de um diretor que dá um beijo de boa noite na testa de sua obra. Isso só reafirma que finais felizes não estão nas películas, e sim, mais além das retinas de quem vê. Visões essas otimistas ou pessimistas das respostas do mesmo problema.

(Solano Lucena)

Vivo Sonho

...bom. Pode ser que a mamãe não volte. Mas eu vou estar sempre aqui. Sempre. Dissera ele ao fruto de seu amor, sua filha, depois de uma longa conversa antes de dormir. Agora, apaga a luz e durma, viu? Papai já vai também. Bons sonhos. E a porta gemeria até o estalo final de seu trajeto.

De manhã, a mulher de sua vida fez a mala com as roupas que mais se sentia à vontade. A mala era única, nem bolsa nem celular nem beijo de despedida. Ela não estava se despedindo. Abrir as portas e as grades que separam um condomínio de apartamentos do resto do mundo, não era se despedir, era sair voando.

Depois de desejar bons sonhos aos dois amores de sua vida, ele entristece. Sentara na cama do casal. Via, no espelho, as fotos. Via o travesseiro cheiroso. Via, no espelho, seu reflexo. Ele a desejava ainda, apesar da briga. E muito. Via, no espelho, sua imagem patética. Contornara o corpo dela em mãos vazias. Via suas roupas jogadas na cadeira. Via lágrimas que não pareciam ser superadas. Não via só a felicidade, pois essa de manhã partiu.

No chão, estavam as sandálias de salto que ela usara na noite anterior. Por que não levara ela o seu presente? Possivelmente, por não ser tão sofisticado como a sua vida, agora, civilizada. Não combinaria.

Sua sandália. De salto, sandália que a colocava mais próxima do céu. Sua sandália. Era o começo ou o fim da mulher que amava. Se fosse começo, era uma introdução perfeita, anunciava bem o que mais vinha. Se fosse fim, era o desfecho que antevia o chão, altar por ele estabelecido. Fé, amor e esperança eram depositadas naquela imagem de mulher. E nada foi em vão.

Com a mesma mão direita pegara as duas sandálias. Tirara as meias, descalçara o sapato e olhara de novo seu presente à mulher. Calçara. Apertado, mas lhe coube. Era estranho. Caminhava de um jeito engraçado. Abriu o armário, estava ali o vestido de festas preferido dela. Onde ela colocava a maquiagem mesmo? Era esse o batom que ela parecia tão sexy, mas isso era um segredo que ele não lhe contava de jeito algum. Joguinhos de casal.

Ele estava vestido de deusa. A barba rala e a voz disfarçada temperavam a diversão. Beirava o ridículo, mas essa era a graça. Fazia poses para o espelho. Beijinho. Mão quebrada. Bolsinha girando. Dedinho na boca. Marilyn Monroe. Playmate. Ele se divertia como não se divertia há anos. Sua risada era alta, mas não acordara a filha que dormia no quarto ao lado.

Depois de tirar o vestido e ter experimentado a lingerie, ele caíra de joelhos no chão, ainda rindo. Hahahaha! Olhou-se. Estava pintado com as cores da mulher que lhe abandonou. A expressão do rosto não era mais tão feliz.

Pelos meus cálculos, três socos no espelho - que se desfazia aos seus pés - seriam 21 anos de azar. O tempo exato que ela demorara a perceber que naquele apartamento escuro mesmo estava a sua vida. E um homem que ainda lhe recebera de braços abertos.

(Solano Lucena)

O circo chegou

Ele a viu antes do show, estava linda. Sua nova casa era essa, havia saído de São Sepé para estudar e acabou ficando por ali mesmo. Ela não o olhava com os mesmos olhos. Também, depois de tanto tempo. Ele pensou em contar que depois dela ter ido para a faculdade, ele resolvera fugir de casa. Pensou em contar que, diante das incertezas da estrada, ela era uma estrela que iluminava seu caminho. Pensou em contar que seu nome não era aquele, Horácio era o que estava escrito na revista. Quando ela perguntou, ele havia esquecido o próprio nome e dito qualquer coisa: “Horácio!”.

Ela o viu antes do show, ele estava tão diferente. Era artista de circo, sempre foi muito engraçado e querido, todos gostavam de Horácio. Ele ainda a olhava com os mesmos olhos que lhe deram adeus na rodoviária. Ela pensou em contar que o procurou meses depois de ter partido, estava disposta a ficar com ele para sempre, mas ele já havia saído de casa. Pensou em contar que era noiva e que seu amado estava a esperando na fila da pipoca. Pensou em contar que, por uma loucura de amor, largaria tudo, noivo, diploma, carreira, cidade. Ela já havia pensado demais nessa vida.

Mas não falaram sobre nada além do superficial. Ele se dirigiu ao camarim, ela foi à fila de pipocas. No camarim ou na fila, algo os atordoavam. Não era a música, era algo muito mais alto. Ao deixarem seus corações de lado, eles contradiziam todas as promessas que fizeram durante a fase mais feliz de suas vidas, a juventude.

O espetáculo começava com números de mágica, animais, trapezistas e equilibristas. A próxima atração eram dois palhaços. O homem de smoking, então, chamou ao palco a dupla mais querida do Brasil, Piroca e Piçolito. Digo, Paçoca e Pirulito. A risada era contínua, principalmente entre as crianças.

E, ao se aproximar do mestre de cerimônias, um palhaço lhe rouba o microfone. Tropeçando em seus sapatos coloridos, chegava ao lado esquerdo do palco. Olhava para uma mulher que estava de braços dados com sua companhia. Declarou-se, mesmo assim. Descartáveis palavras de amor se perdiam no ar e roubavam a atenção de todos.

Suas mãos tremiam em meio ao discurso apaixonado. Lágrimas escorriam borrando seu rosto. Ao parar de falar, ouviu-se um silêncio raro debaixo daquela lona. Ele baixava a cabeça. Pensava no que deveria ter dito há tempos. E olhando nos olhos de sua amada, desferiu: “Só quero que tu me olhes como uma mulher olha para um homem”.

Imediatamente gargalhadas tomavam a platéia. Luzes o focam solitário. Tiram-lhe o microfone das mãos e seu companheiro o empurra de volta ao camarim. Palhaço Pirulito, senhoras e senhores!

Ele estava sentado com as mãos na cabeça escondendo o rosto envergonhado. Seu desespero era visível. “Tu levas alegria para quem precisa, é o trabalho social mais carente de recursos que existe, nunca te esqueças disso”, disse o outro palhaço. Ele havia entendido as palavras certeiras. Deu um sorriso amarelado... E morreu na jaula do elefante cor-de-rosa enforcado por uma gravata de bolinhas.

(Solano Lucena)

A Carta

“Haverá o dia que estudiosos, em sua gaia-ciência de loucos, quererão conhecer mais da vida de seus antecessores. Diante de poucos documentos históricos restaurados – Bíblias, bulas de remédio e 'Diários de um Mago' -, encontrarão essa carta à mercê de seus cuidados.

Incapazes de retribuir um carinho, esses descobrirão a atenção que nossa civilização tem uns com os outros. O filho de Deus por seus irmãos. O curandeiro por seus enfermos. O autor por suas convicções. O adorador por sua adoração. E terão eles a certeza que vivemos no glamour do bem-querer, que convive em nós amor e respeito em harmonia.

Mas eles cometerão um grande equívoco ao afirmar que todos somos filhos do Superior, que toda cura curaria, que todo autor condizia às suas certezas, que toda adoração é inconseqüente. Quem adora, adora a algo, por santidade, carência ou personificação. O que eles nunca entenderão é que entre adornos, promessas e beijos, há também, submerso em nossos tempos, o amor incondicional. Flor de pétalas multicoloridas que insisto em te presentear.

Amo-te. E isso basta.”

Tinha certeza, dessa vez entregaria em mãos a carta de amor. Sua terceira carta de palavras rebuscadas e versos pretensiosos. E assim fez.
- Oi. Eu te escrevi uma carta de amor.
- Por quê?
- Como assim?
- Por que você me escreveu uma carta de amor?
- Hmmm... Porque é o que eu faço de melhor.

Sorriu. E esse sorriso só foi maior quando descobriu que sua mãe era florista, mas que morava com a avó. E essa sabia lhe fazer bombons de licor...

(Solano Lucena)

terça-feira, março 08, 2005

8 de março

Todo dia 8 de março, um grande buquê de rosas vermelhas-paixão dá bom dia à Marisa ainda na cama. Todo dia 8 de março, Seu Fernando diz ao chefe que não comparecerá ao serviço, muita gripe, ficará em casa com a família. Todo dia 8 de março, Donana volta para casa sem docinhos na cesta e com um largo sorriso no rosto.

Todo dia 8 de março, alguém escreve uma carta, um amigo homenageia a amiga amizade, um apaixonado declama o nome da amada no poema, o filho distante se aproxima da mãe por eu-te-amos. Todo dia 8 de março, braços abertos parabenizam, bocas bonitas agradecem, copos coloridos comemoram.

Todo dia é 8 de março para quem ama.

Feliz Dia Internacional da Mulher, mulheres ou amantes do mundo todo.

(Solano Lucena)