sábado, setembro 30, 2006

O Sobrevivente

Mãos à cabeça, muita dor. De manhã, uma cotidiana enxaqueca. E a cura, sabia, estava num fundo falso de gaveta. Uma arma de fogo, um relógio e um recibo. Arma de fogo, era isso. Somente um tiro na testa e, pronto, estaria vivo.

Ouvia passos na escada. E, ao ver, havia roupas pelo chão. Calcinhas, gravatas e broches, um deles era uma lembrança de seu décimo aniversário. Havia um paletó marrom-sujeira, também, sedento por sabão. E muitas crianças brincavam de voar sem asas ali, da ponta da luminária até o deslize do corrimão.

Na mesa, um cogumelo dourado boiava no preto morfético do café, que não beirava uma xícara e havia raiz e terra na colher. Na mesa, sua filha lhe vendia apólices de seguro. Não pense apenas nos seus filhos, também pense em seu futuro.

Um grito vinha do armário da louça. Da louça, nada se escutava. O que gritava era a carta debaixo do saleiro. Uma carta consolo. Uma carta consolo que dizia aberta, sem nenhuma novidade: busque, enquanto vivo, homem, a tua felicidade.

(Solano Lucena)

Toalhas dobradas em rolinho cabem na mochila

Pegou a mochila de pano? Essa aqui? Dentro da sacola da Renner? Ah, mas é que essa mochila é horrorosa... Tá. Ela tirou a mochila de dentro da sacola e a pôs sobre a cama. Isso aqui a gente leva com a gente ou vai no bagageiro? Não sei, eu pus umas bolachas recheadas aí dentro. É, então vai com a gente. Tá.

Dobra bem essas toalhas, assim ocupa muito espaço. Dobro assim? Não, assim... Guarda-chuva em acampamento? Não é um guarda-chuva, é uma sombrinha. Mas não se leva sombrinhas p'ra acampar. E se chover? Se chover, eu tomo banho de chuva contigo. Grande vantagem, sou mais a sombrinha.

Tu acha que vai ser legal? Claro que vai ser legal, eu vou estar contigo, não importa o lugar, não tem como ser ruim. Oh, que meiguinho! Meiguinho é boa... Claro que vai ser legal, não tem porque não ser, né? Nunca acampei antes, sabia? Em tom irônico. Eu imaginava. Imaginava como? Tu tem um pouco jeito de quem nunca acampou antes... Faz careta, sai andando e leva um tapa no braço.

Eu esqueci a nécessaire no banheiro da casa da tua mãe! Ah, agora não dá mais tempo. E o que vamos fazer? Compramos tudo em algum supermercado por lá, deve ter. Ai, eu sou uma avoada mesmo. Cabecinha de vento. É... Sorriem bobos.

(Solano Lucena)

5f

Bar. Bar. Cerveja. Amigos. Amigo do amigo. Amigo da amiga do amigo. Amiga da mãe que finge que não vê. Amigo chato que relembra algo preferencialmente esquecível. Amiga do amigo da amiga. Conversa vai e vem pelos mesmos orifícios. Cerveja, cerveja, cerveja. Geraldo Alckmin para presidente, que acham? Ah, por favor, essa não é a hora... Descontração total.

- Aí, Serginho, por falar em essa não é a hora, tua ex-mulher é minha colega de setor no DERGS!

Pára tudo.

- A Kátia?

- Arrã, ela fez concurso há pouco e passou.

- Mas, não pode, a Kátia era uma anta em matemática. Ela nunca passaria em um concurso que matemática fosse uma exigência...

- Ah... Sei lá, Serginho, sei lá.

- Me conta direito isso! E vocês se falam?

- Claro, oito horas por dia dividindo o mesmo espaço.

Risada geral na mesa. Amigo do amigo do primo malicia.

- Vocês falam sobre o quê?

- Sobre... Sei lá, Serginho. Sobre as coisas que se fala. Sobre o trabalho no setor, principalmente.

- Sei, muito que vocês devem trabalhar num setor que a Kátia faz parte...

- Ô, Serginho, calma aí, a guria é esforçada.

'Esforçada', para o amigo do amigo do primo, era praticamente um gol do Inter.

- Tá, que mais vocês falam?

- Ah, Serginho, sei lá...

- Vocês falam sobre mim?

A mesa já faz um "ih...".

- Ela não fala nada sobre mim?

- Não, Serginho, nem fala...

Era visível que ele estava mentindo.

- É visível que tu tá mentindo!

- Tá, Serginho, ela fala, sim... Ela disse que te amou demais, mas que tu tem muito que crescer ainda.

- Crescer, eu?

- Ela acha que, se tivesse casada contigo hoje, nunca conseguiria tudo isso que conquistou. E ela disse que teu grau de inteligência é 5f também.

- 5f?

- 5f.

- Mas que é isso?

- Ah, tu sabe... Cinco, número. F, letra. Acho que a sexta do alfabeto. Numa escala de um a dez, um número mediano. E de A a J, F não seria uma letra diferente... Conforme o que ela disse, o número 5 indica o grau de contentação dela com a tua inteligência. Diz que tu fala meio errado às vezes. Fala o que não devia em horas próprias para o silêncio. Prejudica-se, enfim... E a letra F seria o teu retrato para essa sociedade exigente que hoje convivemos, sabe? Desinteressante. Monoglota. Poucas faculdades, muitas bebedeiras. E nada de carisma... Isso . Entendeu?

- 5f...

- 5f.

5f era inaceitável. Saiu daquele bar derrubando mesas e casais. Com aquela merda de teste de QI na mão, com as palavras da mulher que ama e hoje o despreza, com as piadinhas que ouviu dos melhores amigos de uma sexta-feira à noite, olhava p'rum horizonte mediano e repetia em voz alta. Eu não sou um medíocre, eu não sou um medíocre, eu não sou.

(Solano Lucena)

Pela Estrada Afora

Uma cruz, três marias, dois irmãos.

Uma cruz, três marias, dois irmãos. Uma pedra, dois caminhos, três percalços. Três corpos, dois relembram uma oração. Dois mortos, nenhum vivo e um cansaço.

Uma carta, um alento e um coração. E a correnteza leva a folha mar abaixo. É virtude, é enfermo e é velado o coração que se detém desenganado.

Não, por favor, não puxe o gatilho. Por gentileza, não provoque o disparo. Um amigo é uma tenda no caminho que, por ser amigo, não lhe nega seu amparo.

Não condene a vida dos outros nem espere que alguém te siga, a diferença é um dom para poucos. É a liberdade que o respeito lhe abriga.

E o coração? Um órgão direito que à esquerda do peito bate o gostar. E o amor é social em seu conceito: mendigas juras, mas que aceito por amar.

Uma cruz, três marias, dois irmãos.

(Solano Lucena)