sábado, setembro 24, 2005

A Invasão

Mas ninguém haverá de invadir o castelo. Paredes grossas nos separam do mundo. Lábios finos declamam amarguras de uma vida, e incendeio vagarosamente.

Onde homem antes não havia visto? Onde não preenchia o espaço vago dentro de mim? Serás tudo, e eu algo. Serás a dor e a cura. O bom e o mau. O céu e o inferno. Meu prazer e meu pecado. Minhas condições, meu amor...

Enquanto fizeres da nossa casa castelo, te amo. Enquanto trouxeres a admiração de tantos, te amo. Enquanto fizeres sorrisos em mim, te amo. Enquanto a noite for dia, enquanto as coisas estiverem no lugar, enquanto não conhecer o que passa aí dentro.

E enquanto tiveres força para me apresentar somente o que há de melhor em ti, meu amor, eu te amo.

(Solano Lucena)

Disseram

Disseram-lhe que a única coisa que aprenderá na vida é amar e ser amado. Iludiram-lhe com a idéia de ser completo, de assim estar seguro. Deram-lhe a impressão de ser bonito. Alma. Deram-lhe um coração e um rosto. A alma. Sinta. O aroma das flores nas árvores. O colorido do céu ao anoitecer. Sinta. A beleza ao abrir um rosto. O gosto doce da vida que recolhe e dá. E recolhe... E dá...

Encheram-lhe seus olhos de lágrimas. Estendiam-lhe as mãos para o infinito, o mundo era pequeno comparado àquilo que estava a sentir. Poderia tocar o céu e anoitecê-lo, sim. Poderia buscar seu amor no outro lado de si. E seu amor estaria ali, ao seu lado, ensolarado, em um dia calmo.

Mas com a parte mais profunda da mão, arrancaram-lhe a alma. Assim, bruto. Como um parto. Rasgante. Uma vez só.

- O amor nada mais é que uma armadilha a si mesmo - com os punhos fechados, disseram a um corpo indefeso, gemente, vazio...

(Solano Lucena)

sexta-feira, setembro 09, 2005

Essa é a sua vida

De cada amor, você encontrará o mesmo. De um mesmo amor, você fará milagres. E quando acordar, verá que é tarde. O amor foi embora e não deixou bilhete. Te amo. Assinado, o verbo.

Você encontrará o céu e o inferno. E verá meu rosto em cada um desses seres. Em cada anjo, encontrará demônios. Em cada um deles, qualidades. De cada qualidade, haverá limitações... Sempre.

E quando encontrar a fossa, você voltará. De mãos abanando. Cabeça baixa. Um perdão lacrimoso na ponta da língua. E eu vou te dizer com meus olhos estremecidos, "você perdeu, trouxa"...

Essa é a sua vida.

(Solano Lucena)

O Príncipe

Lembro do príncipe, era meu colega, se sentava no fundo da sala, não falava com ninguém na aula. E ninguém gostava dele, claro. Um dia, ele desafiou um professor que queria lhe obrigar a ler um texto. Eu sou um príncipe, não preciso ler essas porcarias. Rasgou a folha na frente do mestre mesmo, que não reagiu.

O príncipe não ria na frente das outras pessoas também. Quando acontecia alguma situação engraçada, ele disfarçava, tapava a boca, olhava p’ro outro lado, mas não mostrava afeição.

Uma vez, no corredor da escola, levantei o dedo p'ra ele, tu não pode ser um príncipe, entendeu? Príncipes não existem mais! E ele não me olhou, continuou andando com a mesma tranqüilidade real de sempre, filho da mãe.

Eu sabia que príncipes não existiam. E queria que ele provasse p'ra mim e p’ros outros que estava certo. Na saída, esperei p’ra ver quem o buscaria. Na frente da escola, todos já haviam ido embora, só o príncipe não. Horas já haviam passado, e o príncipe continuava ali. Eu já pensava em ir embora, talvez o cavalo branco não fosse alado, talvez o príncipe tenha ficado órfão...

Até que um Opala velho pára na esquina e buzina estridente. Mas ele finge que não vê. Um homem gordo e simpático abre a janela e abana para o príncipe, que caminha até o carro. Antes de entrar, ele me olha com tristeza, mas eu estampava um largo sorriso no rosto. Príncipes não andam de Opala por aí, meu querido. Eu estava certo. Foi um sorriso, um sorriso tão espaçoso que fez sua cabeça baixa... Mas logo senti vergonha também. Afinal, o que eu estava fazendo ali mesmo?

Lembro que o príncipe nunca mais voltou naquela escola. E nem eu. Nem eu...

(Solano Lucena)

Culto

Livro nenhum explicava a sensação que ela tinha ao lê-lo.

Ele era um livro em primeira pessoa. Contava suas aventuras ao longo de suas cento e poucas páginas. Era um livro triste. Amarguras de livro, julgado pela aparência, rótulos, ignorado em balaios, reavaliação de sua importância na ditadura, etc.

Teve um amor também. Uma Bíblia havia lhe mostrado o caminho. Seu amor era Jesus. Tinha capítulos que salvariam vidas, inclusive a sua. Mas, com o tempo, o caminho se desfez, impreciso, linhas tortas. Não amava mais Jesus. E isso seria dito no próximo capítulo. “Até descobrir que o caminho está em você mesmo”. Pronto, era taxado auto-ajuda.

Lá estava ele na prateleira, com aquelas companhias chatas, falando coisas chatas, fazendo tipo de eu-sei-o-que-estou-dizendo. Seu prefácio, então, já alertava, “isso não é um desses insuportáveis livros de auto-ajuda”. Pessoas de bom-humor começaram a lê-lo. Era um prefácio muito simpático, realmente. Mas, por ser um livro triste, foi logo esquecido antes do final.

As editoras pararam de publicá-lo. Não renderia lucros. Não traria retorno ao que seria investido. Estava na merda. Até encontrar uma saída, a sarjeta. Por ser único, suas impressões eram marginalizadas. Até que ressurgiu, como um culto do underground. Linhas tortas, tristeza, rejeições, respostas... Muitas pessoas já haviam adquirido seu exemplar genérico. E ele já havia mudado a cabeça de muitas pessoas. Há quem o considerava o melhor livro já lido até então. Outras, o desprezavam por ter uma linguagem comum. Com tantas opiniões sobre, ganhou a crítica literária. Despertando assim um novo envolvimento com editoras especializadas em literatura alternativa. No capítulo 8, ele dizia, “De um conselheiro barato a um genial formador de opiniões”...

Sua arrogância ganhou os jornais. Outros livros em primeira pessoa surgiram depois. Escritos para venderem, logo se tornavam best-sellers. E o pioneiro havia sido esquecido novamente.

Esquecido. Esquecido novamente... Até ela conseguir achá-lo numa biblioteca. Como pode esse livro não ter seu merecido valor nos dias de hoje? Mas seu último capítulo havia uma resposta, “Leia e me arranque as páginas após seu consumo”.

(Solano Lucena)

Dramaticamente falando

Nasci dramaticamente dia 6 de agosto de 2005. E minha primeira experiência com o teatro foi consideravelmente boa. Meu nascimento junto de meus irmãos foi consideravelmente bom. Obtivemos o desempenho desejado. Em nível de atuação, de presença, de companheirismo. E “Marinheiro Só” se tornou a música mais linda de um começo de final de tarde.

Aconteceram pequenos vacilos, sim, algumas coisas não aconteceram, claro, mas, como nascimento, foi perfeito. Aliás, até o que se pôde chamar imperfeito foi positivo. Gênios não existem, nem Chico Buarque nem Salvador Dali. Viventes existem. Pessoas que cuidam uma das outras existem. Seres que se comprometem com melhorar cada dia existem. Crescimento em equipe existe.

Um sábado feliz existe.

Um sábado desses foi um dia muito importante na minha vida dramática. Foi o primeiro dia do resto dela.

(Solano Lucena)