sábado, outubro 28, 2006

Cena 15

Duas apresentadoras de telejornal tomam café após o final do programa. Uma penumbra será deixada no palco, elas se encontrarão no meio para contar o que acontecera. Apresentadora 1 está chorosa, enquanto a apresentadora 2 parece sem saber como agir.

Apresentadora 2: Amiga, conta!

Apresentadora 1: O de sempre.

Ele te bateu.

(nervosa) Por que tu precisa dizer, se tu sabe?

Desculpa, eu...

Não, desculpa eu. Tô nervosa.

Quer me contar?

Quer ouvir?

Claaaro! Tu sabe que sempre pode contar comigo.

Bateu. Ele me arrastou pelos cabelos da cozinha até o espelho do banheiro. Queria que eu visse como eu estava mais bêbada que ele.

E estava?

E o que importa!? Eu não machuquei ninguém.

Eu sei, amiga... Não quis dizer isso...

Eu não sei explicar. Nem sentir dor mais eu sinto. Hoje, quando acordei, pensava nisso. Por mais que ele me surre e fale as merda que ele costuma falar, eu gosto dele. Parece que gosto disso. (pausa) Não, não gosto... (pausa) Mas eu gosto, sabe? (expiração nasal de riso) Tu deve tá me achando maluca agora...

Não, claro que não. (compreensiva)

Se eu não gostasse, por que estaria com ele ainda? O que me impede de pegar a chave do meeeeu carro e ir p'ra outro lugar, nunca mais querê vê ele? (aqui acontece uma ascensão na entonação de voz) Quem comprou nosso apartamento fui eu, quem põe janta naquela mesa sou eu, quem paga a puta que ele come antes de vir descontar os cachorro em mim sô eu!

Apresentadora 1 chora. Apresentadora 2 não sabe o que dizer.

Amiga...

(interrompe) Ontem, ele foi dormir e eu fiquei pensando como seria fácil acabar com tudo isso. Só depende de eu querê. E, só de pensar nisso, já perco o sono... Tenho medo que ele descubra o que estou pensando. E ele pode descobrir, ele já fez isso. Pode, eu sei que pode. Eu mereço apanhar, sabe? Não pelos motivos imbecis que ele dá. Eu mereço apanhar porque eu fico. Porque eu passo noites chorando e odiando ele. Mas, no fim, eu fico. Fico...

Tu já pensou em procurar ajuda?

Já, a mãe dele. Ela disse que ele sempre foi assim, família de desequilibrados.

Sério...

Não. Eu tenho medo. Não sei até aonde esse cara é capaz de ir e isso é sério. Imagina um dia acordar com a pessoa que tu ama tocando no interfone. Tu vai abrir e ela toma conta de tudo, de novo. É bem típico dele. Esse cara é um mal que eu criei. Um dia desses descontei no Douglas a raiva que eu tinha.

Bater no filho dele não ajuda.

Ah, ajuda, pode ter certeza...

Isso me lembra uma peça que vi faz... Umas três semanas, eu acho. É sobre uma mulher que mata os filhos para se vingar do marido infiel.

(Acontece a peça)

E tu gostou?

Gostei, mas... É teatro, né? Nunca acreditei em teatro.

Tu é engraçada...

Engraçado é o cara que foi comigo. Sabe aquele tipo minha-mãe-disse-que-eu-sou-o-bom-e-eu-acreditei?

Sei! (ri) Nunca chegue bêbada em casa com um desses!

Comigo não, filha, comigo não! Acho que toda mulher deveria aprender isso nas aulas de ballet na creche: "homem é que nem chiclé, perdeu o gosto? Toca fora".

É, eu pensei em outra dessas...

"É quando tu pisa que eles grudam"?

Arrã!

(ri) "Só o que muda de um p'ro outro é a embalagem e a figurinha".

As duas riem e se abraçam como cúmplices, o abraço é antídoto para dor.


(Solano Lucena)

A Muralha

Ela é boba e gosta de ti, seu imbecil. Ela tem sentido tua falta. Repara o cuidado que ela tem p'ra te dizer as coisas. Se p'ra ti é só uma impressão, p'ra ela tem gosto de um amor que nunca existiu. Assim mesmo, querido.

Um amor conquistado e diferente, não é desses amores que chegam e se jogam, não. É um amor que vai tomando dimensões e ocupando sinais. Tantos sinais que você nem vê mais. Os sinais se tornaram corriqueiros, passaram a ser o jeito dela. E o jeito dela se desdobra em mil poses antes de te dar um beijo no rosto.

Ela é dramática e exagerada. Ela, no fundo, queria morrer aos teus pés só p'ra ver se tu acudiria ou passaria por cima... Passaria por cima. Eu conheço. Só toma cuidado p'ra, depois de passar por cima, não ir limpar os pés na grama. Além de ser muita humilhação para ela, o merda da história é tu. Favor não esquecer.

(Solano Lucena)

O Muro

Eu voltava da escola e a kombi me deixava na esquina de casa. Caminhava algumas dezenas de passos e colocaria a bolsa sobre o sofá. Iria lavar as mãos e iria almoçar. E, possivelmente, iria reclamar da comida também. Eu fazia isso em dias comuns. Mas nem todos os dias que eu fazia isso eram dias comuns.

Ao caminhar meia-quadra, eu passava por um muro escrito "Seco MD". Seco era o meu amigo e MD, o meu bairro. O que me chamava a atenção estava por detrás daquilo, na verdade. Eu ouvia vozes atrás do muro. O muro escondia alguma coisa... Claro, é um muro. Mas é alguma coisa diferente. Meu pai disse que é um terreno baldio. Pode ser, pode ser. Eu duvido. Sempre, né?

Pedi a ajuda de dois amigos, o Pedrinho e o Fábio Marié, da Hugo Ribeiro. Quero conhecer o outro lado daquela muralha. Muralha, que aventura isso seria. Eu sempre fui bem magrinho e meus braços não teriam força p'ra derrubar a parede. Mesmo se tivessem, seria um desperdício. O muro fica melhor assim, em pé.

O Marié encontrou uma tábua perto do lixo, o que era muita sorte, já que aquele era um dia de lixo molhado. Molhado não, se diz orgânico. Ok, já temos tudo: uns aos outros e a tábua. Eu pensei: a gente pode jogar a tábua e acertar a cabeça de alguém do outro lado com ela... Eu também pensei: a gente pode usar a tábua p'ra cavar um túnel subterrâneo e atravessar o muro por baixo... E o Pedrinho perguntou: porque a gente não encosta a tábua assim, enquanto alguém sobe nela e vê o outro lado?

Foi unânime a decisão que quem subiria era eu. Eu sempre fui muito magrinho e isso também pode ser lido como levinho. Eles entrelaçavam os seus dedos, como se formasse um estribo, onde eu colocaria meus prematuros all-stars e seguiria com um passo para o alto da tábua.

Eu era o maior.

Com os pés no degrau que a tábua fazia encostada no muro e com as mãos no topo desse, que meu nariz não alcançava, eu fazia força com os braços. Os braços me levariam até a visão que eu pretendia ter. E eu estava certo.

Do outro lado do muro, pessoas arrumadas corriam por um jardim estranho. A comemoração era em torno de um casal de meninos. Havia um lago onde gente cantava com roupas nas mãos. Havia uma casa de madeira onde gente dançava outras músicas. Havia uma fogueira onde gente batia palmas. Havia jóias nos pulsos de toda gente. Havia um muro que eles cobriram com árvores e arbustos. E havia meu nariz ali plantado.

Meus braços não agüentariam muito tempo. Antes de desabar com tábua e tudo, a senhora mais velha me piscou o olho.

E aí? E aí? O que que tu viu lá? O resto... O resto? Lixo? É... Hã... Lixo, sim.

Eu sabia que era um terreno baldio. Eu te falei, trouxa. Meu pai tinha razão, já que tu não tem pai, tu devia ouvir o meu. Tá, mas, e os barulho? Os barulhos devem ser de cachorro, de rato, sei lá. Vambora...

Foram.

O resto era o restante. A cultura que a cidade marginaliza e o muro esconde. Eu falei isso, na verdade, eles que não entenderam.

(Solano Lucena)

Os Muralistas

Os Muralistas expunham suas idéias com as mesmas convenções artísticas que aqueles da tela e cavalete. O que diferencia os Muralistas desses, é a temática social, seus ideais e sua ousadia de ter suas obras vinculadas longe das grandes galerias.

Os mexicanos, por estarem exatamente na divisa, tinham uma visão certeira do que beirava o futuro. Estados Unidos, esquecimento das raízes indígenas, valorização da cultura estrangeira. Nos murais, a realidade era forte e contemplável.

O motivo para esse movimento acontecer é a sobra da Revolução que aconteceu no país. Uma revolução que elevaria os camponeses explorados, escravos ou com salários irrisórios, para um patamar superior. Zapatistas lutavam pelos seus direitos e o governo mexicano se sentia oprimido. Mudava a lei e daria ao trabalhador do campo mínimas condições.

Mas a mínima condição era pouco para os Muralistas, que transformaram a Revolução em uma causa artística. Murais eram pintados em locais diversos, igrejas, escolas, museus ou palácios do governo. Sempre retratando o povo, o popular, essas obras contestavam valores e eram vistas como comunistas pelo mundo.

Entre os Muralistas três grandes nomes são levados em conta: Rivera, Orozco e Siqueiros.

Diego Rivera é o mais conhecido dentre os três. Estudado na Europa, foi por mim descoberto através do filme "Frida", que retratava a vida de Frida Kahlo, sua esposa. Com temáticas inteligentes, seus traços parecem bastante influenciados pela escola européia, detentora do bom-gosto no mundo.

O homenageado da 4a Bienal do Mercosul, José Clemente Orozco trabalha bem a brutalidade em sua obra. A realidade não é bonita, mas ela precisa ser exposta em murais. O mundo precisa ver, não apenas conterrâneos de América Latina. A obra é estrategicamente bruta e rude. O que, dentro do contexto, a torna agradabilíssima à percepção.

Alfaro Siqueiros é o terceiro e não menos importante artista plástico. Não estava ligado à história mexicana com sua temática, como Orozco e Rivera, seu interesse era apenas a modernidade, a luta de classes, o futuro México. Sua obra é muito voltada para a geometria de peças, embora ainda representativa, o que é uma visão bastante moderna ao se tratar de início de século 20.

(...)

(Solano Lucena)

domingo, outubro 15, 2006

Algo nessa noite precisa brilhar

Escolhe o modelo sem vê-lo. Pintura. Pinta de vermelho seu beijo. Censura. Ouve conselhos e apelos. E arruma. Na frente do espelho o cabelo. Que apluma. Noites, pesadelos e sonhos. Perfuma. E os leva p'ra rua sem zelo. E, assim, os acostuma.

A minha intenção não era fazer você se apaixonar de novo, nem tento. Me contento com as três sensações de ti:

O preto do teu vestido.

O colar com os meus dentes. Quando era a dona de meu sorriso. Sorriso de fim-de-tarde, sombra das árvores, outros risos poentes e a lua.

A lua que eu te dei e espero que você me devolva, algo nessa noite precisa brilhar. E, saiba, eu ainda tô na tua...

...comunidade. E, de verdade, para sempre pretendo estar.

(Solano Lucena)

Plutão

Plutão não é mais o planeta que era. Plutonianos não se conformam com as mudanças que ocorrera de um tempo p'ra cá. E isso foi crucial para desintegrar uma realidade.

A Astronomia estava errada. Plutão não era o último planeta do Sistema Solar. Era minúsculo demais para tal. Tudo que aprendi sobre Astronomia, até então, é questionável. Não sei, também, se um dia o homem chegou à Lua. Sei que, em teorias, ele já tem todo o universo.

Plutão não é mais o planeta que era. Não é por estar longe que seria esquecido. Não faz mais parte do Sistema Solar, ou seja, perde a chance de ser planeta-sede das próximas Olimpíadas Interestelares. Uma pena, realmente.

E quem perde com isso é a Astrologia. Somos nós, de Escorpião, que ficamos sem ao menos um regente digno. Leoninos são regidos por uma estrela, cancerianos por um satélite natural e escorpianos, agora, por um ex-planeta. O primeiro ex-planeta entre bilhões e bilhões de anos. Não se esqueça de me dar parabéns.

(Solano Lucena)

A Marilene

Pai, a Marilene vai embora. Puta-que-pariu!

Marilene era a empregada que o pai contratara para inaugurar o filho. Dezesseis anos, só queria saber de Internet. Dezesseis anos e não havia se interessado ainda por meninas. Nem por meninos. Nem por revistas, canais ou putaria na web, nada. O guri era um caso grave.

Marilene foi escolhida a dedo pelo pai. Não bastava ser uma boa empregada, precisava ser uma mulher que desse ao filho já uma boa auto-estima para a vida. E isso não seria qualquer uma.

Então, é casada? Sou, sim, senhor. Ok, obrigado.

Então, é casada? Co o Jerônimo e temo cinco filio. Ok, obrigado.

Então, é casada? Não, graças ao meu senhor, Jesus Cristo! É religiosa? Religiosa não, espiritualista! Ok... Obrigado.

Então, é casada? Não, nem tenho namorado... Não? Não. Marilene, 20 anos e bonita. Vinha de uma cidade do interior chamada Cabritinho. Sou de Cabritinho, perto de Curió, sabe? E tinha um sotaque muito peculiar.

O plano é o seguinte, faça meu filho um homem e eu te pago p'ra não trabalhar. Feito. O guri tinha cara de besta mesmo, não seria difícil.

Na primeira semana, nada. No primeiro mês, tampouco. Estava difícil... Eram oito meses se fresqueando p'ro guri e nenhum resultado. Nem quando saía do banho só de toalha, ele a olhava. O que tem de errado aí, hein?

Ela já estava até desistindo. Enfim, ele deve gostar de outras coisas, acontece. Ela já passava o aspirador de pó pensando em Cabritinho. Havia deixado coisas inacabadas em sua cidade. Talvez fosse melhor voltar. Até que o guri desgruda do computador e diz:

- Faz de novo.

- O quê?

- O que tu fez p'ra passar o aspirador no canto de lá.

Ela dava um sorriso. Feliz, se agachava para chegar ao canto de lá, como havia feito anteriormente, sua micro-saia mostrava 3/4 de bunda e o menino do computador via tudo aquilo satisfeito.

- Pronto. (ria boba) Deseja mais alguma coisa? - perguntava oferecendo-se.

- Não, tá bom, pode ir.

Saiu ela furiosa.


(Solano Lucena)

O cara que escreve

Se não fosse o cara que escreve, me perguntaria: quem é esse, que sempre contradiz o cara que escreve?

Eu sei. Ao me conhecer pessoalmente, vejo que não tenho a mínima graça. Não que ao escrever tenha. Mas, pelo menos, busco encantar alguém de alguma forma. O cara que escreve tem um problema. O que não escreve tem dois.

O cara que escreve, na verdade, é uma criação. Somente mais uma criação fraca e malsucedida. Seu trabalho é mostrar o lado errôneo e pouco heróico de alguém. No caso, ele mesmo. Ele, que, na verdade, é o mesmo que eu. A verdade acabou vazando por tudo e tudo que é escrito hoje o descreve. Resgatar fundos escuros de um caderno de linhas tortas já foi uma proposta, hoje é regra. Não importa a validade do caderno, dos fundos e das linhas, o cara que escreve se repete mesmo assim.

E o que não escreve não tem o que repetir. É tão sem-graça que chegam a ser cinza seus domingos. Que se vê num lugar onde nunca estivera. Que, por onde caminha, não encontra arco-íris, mas sempre acreditou saber onde este ficava: lá do lado de lá dela, que escreve bonito.

(Solano Lucena)