sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Maravilha

Tomou cuidado ao atravessar a rua. Tomou o remédio p'ra não ficar resfriado. Tomou o ônibus que o deixaria mais próximo. Hoje não poderia morrer. Hoje iria encontrá-la. Hoje não.

Eu não te conheço mais!, disse uma amiga que o encontrou no caminho. Pois é, eu estou mudado. Concordaram que sim com o mesmo sorriso... Então tá, vou lá. Então tá, a gente se fala. Então tá.

No bolso, ele tinha uns poeminhas bestas, dinheiro - caso precise de algum para algo na vida - e o endereço do lugar.

Era uma avenida escura que passava muitos carros em alta velocidade. Muitos mesmo. De um lado, ficava as casas ímpares. Do outro, as pares. Que incrível! Ficou admirando a numeração da rua, enquanto o dono do bar o olhava. Posso ajudar? Não mais, já se foi o tempo que eu precisava de ajuda. Mas aquele ali precisa, ó. E saiu dono da razão.

Casa 3326. Numeração par. Então, é do lado de lá. Tocou a campainha. E esperou. Ajeitou o casaco. E esperou. Fez uma pose sexy. Não, essa não. Outra. Isso! Assim... E continuou esperando. Esperando.

Até que os cachorros latiram, as grades se abriram e ela saiu. Com uma criança no colo, uma bandana na cabeça e uma cara de espanto ao vê-lo.

- Te arruma. Eu vim ser o teu homem.

(Solano Lucena)

Renato e sua guitarra

Chegou da aula, pôs a mochila no sofá e foi fazer algo para comer. A mãe havia deixado lasanha no micro, era só esquentar. Foi comer no quarto, queria ver The O.C. na tevê. Mas, ao chegar nele, um susto. Sobre a sua cama havia um case. Havia um case sobre a sua cama. Sua encomenda chegou uma semana antes do previsto.

Lindo. O case era lindo. Preto. Um metro de comprimento e uns vinte centímetros de altura. Na parte superior, uma palavra: Fender. Em alto-relevo. Lindo. O case era lindo.

Abriu. Espuma de poliuretano contornava aquela perfeição. Uma Fender Stratocaster americana adormecia naquele case. Lavou as mãos antes de acordá-la, claro. E a Fender Stratocaster americana estava em suas mãos.

Ele afagava aquele corpo de groupie. Aquele corpo branco, que tantos outros famosos já teriam afagado. Pegava no colo. Acariciava seu braço. Abraçava emocionado. Aquilo era pura excitação. Era o clímax de sua vida.

Fez seu primeiro acorde, um sol. Um sol que tremeu os vidros do quarto. Um sol que acordou sua mãe no quarto ao lado - Natinho, que barulho foi esse? Um sol que se abriu em um dia nublado. Um sol, um sol que iniciava um sonho.

- Natinho, o caralho, teu filho agora é um rockstar, porra!

(Solano Lucena)

O(s) Altar(es) Certo(s)

Andava José pela rua desiludido (culpa de sua falta de fé – assim disse Maria). Não comia, não era comido. Procurava ele por alguém que lhe completasse os dias todos os dias, coisas de Josés.

Até que ouvira, da janela de um casebre, a voz gostosa de uma moça de camisola rouca. Rezava ela. Seus joelhos nus eram marcados pelo tapete gasto, suas mãos juntas só se desfaziam para espantar os ateus mosquitinhos de seu quarto.

- Papai do Céu, salve a mamãe do mal que não sofre. E deixe o papai bem longe do Céu. Tire as mágoas da mesa de quem não tem e adoce o rosto de meu inimigo para seu próprio bem. Sirva de mosqueteiro bom na minha cama e para meus anjinhos competentes, abana?

Impressionado com a simplicidade da moça, saía José. Aquela menina era linda, era boa e graciosa. Refez-se no bar da rua de cima. Pediu informação a uma mulher extravagante, que usava grandes jóias, um crucifixo reluzente e trajava um vestido tão curto, que nem parecia caber todas as cores que ali havia.

- Quem é ela?

- Maria,
Filha de Ticiana e Osório,
Um anjo de garota.
Sofre, mas nunca reclama dos pais – Ticiana come a cuca que o demo cuspiu.
Osório é o próprio demo. Cospe a cuca na Ticiana que comeu e não consentiu.

A janela estava quebrada. A lâmpada do poste vazava pela janela até a cama vazia. Os grilos cantavam o mais alto que podiam. Corria José com Maria nas costas. Jesus no coração também era lembrado. Atravessava o vilarejo até chegar próximo da mata. Colocava Maria no chão e com um beijo na boca acordava sua assustada bem-amada.

- Que queres? Quem és? Católico ou pagão?

- Amo-te mais, mulher
Quer meu próprio Amo?
Sumi na escuridão dali
E lá, em seu clarão, me pus.

- Hmmm... E o que tens no coração? A luz? Mundano ou cristão?

- Mundano, entorpecido por Deus
Silêncio na relva da Sua reza
Preza por mim, me pesa,
Ouro...
Sacos d’ouro – nosso paraíso
De meu séqüito conforto,
Juízo.

Juízo. Ela havia se impressionado com o ato de bravura do rapaz. Casaram-se dois meses depois. Osório vendeu sua filha por três sacas de ouro. Ticiana dava graças a Deus por não ter mais que explicar quão feliz era a vida de uma mulher casada.

E todos viveram com Deus no coração.

(Solano Lucena)

O Sentimentalóide

A declaração do Sapo do lago:
Penso pelas pernas e não vejo em mim o que quero. Sou muito menos do que o meu senso crítico considera bom.

Amo-a de verdade. Passo noites tentando entender o porquê. E o porquê dela ter se interessado por algo tão vazio existencialmente como é o príncipe de sua vida. E sei (tenho em mim a certeza) que, se fosse seu amigo, ao menos a teria por perto, saberia de seu coração e do estado dele antes. Seria, então, o ente mais fiel que ela teria p’ra si.


A declaração da Princesa de Feliz:
Nada sei sobre o ser humano, no mundo só vejo felicidade. Nada pode derrubar a beleza da vida presente que há, sei, só entre os muros do castelo. Meu príncipe me aguarda. Amo-o pelas virtudes de suas nobres palavras.


A declaração do Príncipe de sua vida:
Yeah!


A declaração do Sapo do lago:
Vejo-me atento a seus passos. Corre ela junto ao lago cantarolando canções populares, que diz não saber onde aprendeu. Apresento-me, finalmente, co'a minha esperança de me tornar príncipe um dia. Tenho-na como ser maior da natureza. Acho que gostou de mim.


A declaração da Princesa de Feliz:
Corria eu junto ao lago, cantarolando as bregas músicas que os súditos do palácio cantavam em meu banho, quando, repentinamente, deparei-me com um sapo falante. Exemplificava ele as diferentes formas de amor, até propor-me a incondicional. Grátis. Não sei de amizades, nunca tive um amigo ou irmão. Vi o mundo sob uma nova ótica. O que sou comparada à grandeza do universo? Fui feliz ao conhecer a cultura que esse simples sapo me proporcionara. Sou algo mais completa agora. E, quando vi, estava atrasada, tinha que ouvir as lindas poesias declamadas por meu amado.


A declaração do Príncipe de sua vida:
Yeah! It’s only rock’n’roll, baby!


A declaração do Sapo do lago:
N’outro dia, cá estava ela, linda, como não podia deixar de ser. Pedia-me conselhos e chorava graças à forma que seus atos eram interpretados por seu pai e noivo. O fato de sua pureza ter se perdido no tempo colocaria em dúvida, também, sua fidelidade. Nada pude dizer para confortá-la. Não sou bom em falsas palavras, como é seu príncipe.


A declaração da Princesa de Feliz:
Nunca estive n’uma situação assim. Os dois homens da minha vida exclamando adúltera por entre os corredores do castelo. Questionava-me sobre minha sanidade. Estaria eu, realmente, me confessando para um sapo?


A declaração do Príncipe de sua vida:
Nada tenho a declarar sobre a trama neste ponto. Minha intromissão fica restrita a uma personagem de contestáveis interesses e, caracterizando o empecilho d'um romance, abstenho-me de refletir sobre as demais coisas. Obrigado.


A declaração do Sapo do lago:
Angustiada pela postura firme de seu pai, estava ela trancafiada em seu quarto sem poder, ao menos, abanar-me (a janela fica do lado contrário ao lago). Sinto-me só e insaciado, parece que meus planos não foram traçados como deveriam. Creio que nunca terei o calor da sua presença junto ao meu insignificante corpinho anfíbio.


A declaração da Princesa de Feliz:
Porque minha vida toma este rumo? Nunca fui uma má filha ou desonrosa para meu noivo. O que pode ter-me feito assim: aflita, supliciosa, gemente, lacrimosa, contristada, dolorosa, dolente, chorosa... Hmmm... Triste?

Só pode ser... O Sapo! Nunca tive tal sensação, tomar as próprias lágrimas salgadas. Só pode ser aquele Sapo calunioso. Meu reflexo no espelho é deplorável. E só há um jeito de me ver sorrindo outra vez, de voltar à minha antiga vaidade: matando o Sapo!


A declaração do Príncipe de sua vida:
Foi um grito alto vindo da direção do lago. Ela se lastimava pela morte de uma rã. Não entendo o porquê, mas a partir dali, ela voltara a ser a menina que era. Nós vivemos felizes para sempre, eu acreditando no lado prático da vida e ela com o seu ar de romântica incompreendida que ainda crê n’um amanhã melhor... Tolices, meu bem, tolices.

(Solano Lucena)

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Estéticas e Mídias

Foi-me dada a tarefa de escrever sobre uma visita minha à Bienal do Mercosul que o Gasômetro conforta. Não tenho certeza, mas acredito ser a segunda ou terceira vez que vou à última das sedes da Bienal, segundo o roteiro construído pelo curador do evento, Paulo Sérgio Duarte.

O Gasômetro me agrada. Por mais que tenha um caráter de desorganização – a interatividade se tornou restrita, os idealizadores não tiveram o mesmo cuidado como em sedes tipo Cais do Porto, Santander Cultural e MARGS, onde toda uma estrutura pedagógica foi pensada -, suas obras são fortes e muitas marcam pela politização.

Essa politização é visível na primeira obra por mim vista nessa visita. O chileno Mauricio Guillen filmou, da janela de seu atelier em Londres, uma guarita. Uma guarita no meio de um terreno baldio. A obra se chama "Night Shift" (Turno da Noite) e mostra um homem que passa doze horas do dia dentro desse lugar. Desse lugar de um pouco mais de dois metros por dois metros. Havia uma faixa no chão ao lado do vídeo. Essa faixa mostrava o diâmetro da mesma. Inclusive, seu nome era "Gate house" (guarita).

Ainda no vídeo, uma música ao piano remete um clima triste de solidão. Foi o que me passou, ao menos. Solidão, falta de perspectiva de futuro. Ao lado do vídeo, havia um segurança. Um segurança que trabalhava doze horas por dia de terça a domingo por um salário inferior ao de um mediador. O segurança não sabia, mas ele quase fazia parte da obra, p'ra mim. Dizia "a arte mostra também o óbvio. E por que não?".

"Work Frame" (Quadro de Trabalho) era a última parte desse belo trabalho do mexicano. Uma fotografia que dá a impressão de ser feita de pedrinhas. Nessa fotografia, o terreno baldio aparece limpo. Não há guarita. Não há lixo em volta - como havia no vídeo. Não há urubus - como também havia no vídeo. Guillen diz, preparem-se para a foto.

Ao sair da obra do mexicano, encontramos a de um brasileiro. Thiago Rocha Pita também constrói uma vídeo-instalação, "Ponte Aérea com Tempo Rodoviário". O registro de uma viagem de avião com duração de 4 horas. O título é irônico, como a obra. Uma ponte aérea, que seria algo prático e rápido, nos é apresentada em 4 horas. Nuvens são projetadas n’uma televisão de tela plana. Como um quadro que, aos poucos, se desconstrói. Descansar em frente à obra é um convite.

Saindo da ironia das vídeo-instalações e entrando na ironia das fotografias, Fredi Casco chama a atenção. Paraguaio, ele reproduz imagens da Guerra Fria de uma forma satirizada. Debocha das cerimônias, dos rituais elitistas, do governo diretamente. É uma série de fotos em preto-e-branco, na qual a que mais me chamou a atenção era a que havia um padre com uma máscara de gás cercado de mulheres da alta sociedade. Questões raciais, hipocrisia, homens idênticos fazendo alianças militares, pouca coisa foge da crítica de Fredi Casco e suas fotografias manipuladas. Mais críticas a seguir com o polêmico Fernando Llanos.

Fernando Llanos é um videoman. Seus equipamentos fazem parte de seu "uniforme de trabalho". Isso até se mostra nas performances e no bonequinho, réplica do artista. O mexicano saiu pelas ruas de Porto Alegre mostrando ao porto-alegrense como o porto-alegrense é. Sua obra é uma mistura de intervenção urbana com vídeo. Ele os projeta em locais diferentes. Recentemente, uma prostituta, que participava de um vídeo seu sobre a Avenida Farrapos, entrou na justiça pedindo indenização por uso indevido de imagem. Segundo ela, não houve consulta do artista para que a imagem pudesse ser veiculada. Veiculada em uma instalação da Bienal. Desde a primeira vez que vi a obra, gostei. Pela ousadia e, principalmente, pela estética do artista. Performático.

De Córdoba, Argentina, "Primavera". Nena, Primavera, Rosário, Sofeador e Mono são cavalos fotografados por Adriana Bustos. Todos eles já estão mortos, diz o texto ao lado. Um vídeo mostra a visão de um cavalo nas ruas argentinas puxando uma carroça. A exploração animal, então, é o tema. Sem o texto ao lado, a obra passa por interessante. Tendo um extra na informação sobre meu olhar, a obra me é uma das favoritas, com certeza.

E, para terminar, a caxiense Diana Domingues brinca com meu afeto pela Pop Art. "I'Mito: zapping zone" é uma instalação de estética kitsch. Madonna, John Lennon, Elvis, Che Guevara, MS DOS, óculos 3D significam muito p'ra minha geração. Ou p'ra mim, especificamente. A brincadeira com ícones é inteligentíssima. P'ra mim, "heróis". P'ro próximo que entrar, ilustres desconhecidos. "Quão universal é um ícone?". No Santander Cultural, obras concretistas são expostas. Franz Weissmann, Max Bill, Carmelo Arden Quin. Nelas, a linguagem é universal. Um quadrado é um quadrado em qualquer lugar do mundo. A Marilyn Monroe... Que Marilyn Monroe?

(Solano Lucena)

Produtividade em Pesquisa

A telenovela é um produto. Um produto artístico que é vendido em um meio midiático. Baseada nos moldes da radionovela, a televisão dos anos 50 obteve um sucesso inimaginável ao ver a repercussão que caberia à telenovela no Brasil. Tal repercussão levava empresários a investirem mais no meio e, assim, o tornando o veículo de integração nacional que hoje é. A telenovela é um produto que vende e convence.

A telenovela é um produto que vende graças ao seu forte merchandising. Merchandising é uma ação publicitária que visa a credibilidade de uma marca para um público através de um meio específico. De uma forma, normalmente, discreta, esse tem sido uma tendência ainda a ser explorada, se comparada a programações e novidades norte-americanas.

No Brasil, o merchandising começou em uma telenovela, "Beto Rockfeller", em 1969 na extinta TV Tupi. A novela tratava de um vendedor de sapatos que soube se incluir no meio da alta sociedade paulista. Beto Rockfeller, o personagem, acordava sendo vítima de uma ressaca e se auto-remediava com um produto da Bayer.

A propaganda em produções televisivas ainda engatinhava quando a Rede Globo investiu na área. Até então, só se via merchandising em peças cinematográficas, americanos o utilizavam para garantir os custos de suas produções e seus filmes acabavam por chamar a atenção para esse meio.

Dancing Days hoje é nome de discotecas. Simplesmente, foi uma telenovela que fez história na televisão brasileira, não apenas pelo seu conteúdo dramático, mas também por ser o primeiro registro de um grande case publicitário. Antes dela, as trilhas sonoras das mesmas eram praticamente um produto à parte. Em “Dancing Days”, a Som Livre e a Rede Globo se dispuseram a garantir uma trilha de sucesso. No dia da estréia da novela, o LP já era vendido. Músicas dançantes, As Frenéticas, que estavam em alta na carreira, faziam a abertura do programa, o glamour da noite. Tudo meticulosamente estudado para que o programa alcançasse o auge comercial. Em “Dancing Days”, Sônia Braga vendia calças jeans Staroup na televisão e o Brasil conhecia sandálias Melissa Aranha, uma versão tupiniquim do modelo europeu, isso tudo em 1979.

Um ano depois, Betty Faria apresentava na TV a marca USTop em "Água viva". Assim, os anos 80 foram fundamentais para a consolidação do merchandising na telenovela brasileira. A partir daí, os produtos não eram somente abordados nos intervalos, a ligação entre a obra de arte e seu instinto comercial era cada vez mais perceptível.

Está atualmente no ar uma novela da Rede Globo chamada "Belíssima". Belíssima é uma marca de lingeries bem conceituada em toda América Latina. Antes de sua veiculação, a Globo expunha a empresários sua proposta, “Belíssima é uma marca que alude à perfeição e à estética, à sofisticação e à beleza. O carro-chefe da Belíssima é a lingerie, mas o grande glamour e força desta marca podem ser emprestados a muitos outros produtos”. Assim dizia o site da emissora antes do programa ir ao ar. “Belíssima” seria o produto midiático de sucesso e seu merchandising, o mais forte das telenovelas brasileiras dos últimos anos.

O poder de uma novela popular é incalculável. Tendências, atitudes, personalidade e produtos de consumo, tudo está diante dos olhos de todas as classes sociais. A telenovela une um país de opiniões e realidades tão diversas. A maior publicidade não é aquela que simplesmente vende, mas, sim, a que conquista. E eis um meio que parece ter crédito o suficiente para isso.

(Solano Lucena)

Psicologia da Comunicação

Dogville é uma cidadezinha esquecida pelo mundo. Situada em algum lugar entre as montanhas do meio-oeste norte-americano, uma população pobre, de um pouco mais de dez residentes, vive em condições precárias.

Acrópole é a parte alta de uma cidade antiga. Primeiramente, como Dogville, constituía um lugar de refúgio para populações ameaçadas por invasões inimigas ou flagelos naturais. Com o tempo, a idéia de proteção relacionada com altitude conferiu à Acrópole um lugar santificado pelos deuses.

A história de Dogville se dá pelo refúgio de Grace, Nicole Kidman. A personagem principal busca por proteção e recorre ao vilarejo entre as montanhas. Grace conta com a ajuda dos 12 moradores da cidadezinha para que pudesse permanecer em seu "porto seguro".

Mas, com o tempo, esse se desfez. Os moradores de Dogville, aos poucos, mostravam as mais desprezíveis mesquinharias humanas e sociais. Ela se mantinha forte, ainda acreditava no ser humano e permanecia serena e guerreira em suas certezas. Atena simbolizava a guerra justa e possuía uma disposição pacífica, como a personagem do filme. Deusa da razão, Atena presidia também as artes e a literatura. Grace lia e ensinava para os meninos do vilarejo.

Embora Grace não goste de violência, seu espírito de justiça fala mais alto no fim do filme. "Deixe-o vivo. Ele só está brabo porque um dia neguei um osso a ele”, ela, após a matança, referindo-se a Moisés, o cachorro que dava nome à cidade.

Dogville trata também de pecados da natureza humana, como a vaidade (Liz Henson), o orgulho (Jack McKay), a ira (Vera), a avareza (Ma Ginger) e a inveja (Chuck). Características humanas são visíveis na mitologia greco-romana também. A arte mostra ao homem suas virtudes e sua ignorância.

(Solano Lucena)

domingo, fevereiro 05, 2006

5 de Fevereiro de 1936

É hoje! Setenta anos! Setenta anos é bodas de quê? Bodas de vinho. E há setenta anos o casamento de dona Sylvia com seu mais-que-competente anjo da guarda bebe dessa alegria.

Não sei como tu olhas para trás, mas deves olhar com olhos satisfeitos. Mãe de quatro filhos, quatro ricas criaturas que buscam nas suas famílias passar a educação eficiente que tiveram contigo. Foste avó de onze netos, viste crescer em épocas diferentes pessoas distintas e te viu amando como mãe novamente. Foste mulher do teu marido. Aliás, a mulher que todo marido sonharia em ter, com certeza, paciente, dedicada, confidente, guerreira. Guerreira... Foste guerreira da tua vida. Conseguiste se manter fazendo um trabalho que ama, conseguiste se manter em pé, manter em pé uma casa, manter em pé uma família, conseguiste nunca cair. Tuas certezas sempre foram peso p'ra porta. Porta que sempre esteve aberta para todos. Aquela casa cheia é prova disso.

Não sei como tu olhas para frente, mas deves olhar com os melhores olhos também. Ainda há muito que viver, temos certeza disso. E eu sempre estarei ao teu lado para o que for preciso. Quero que tu sejas não só a melhor mãe, a melhor avó, a melhor esposa, a guerreira, quero que tu conheças teu bisneto também. Um dia, quem sabe.

Amo-te, minha melhor amiga. Nem mais nem menos. Amo-te exatamente na mesma proporção de sempre. Quando nossa casa grande parecia maior ainda e eu dormia no teu barrigão porque o dia havia me cansado muito...

Obrigado, vó. Feliz aniversário.

(Solano Lucena)

Das Frestas da Persiana

Das frestas da persiana, meus olhos. A árvore sempre esteve ali. Os galhos balançam e me assusto. Assusto-me com o ruído que a noite faz. Tenho medo de acordar o escuro. Se escuto passos pela sala, lençóis hão de me proteger. A TV ligada é só solidão. E eu não vejo nada...

Covardia, você nunca terá alguém. Nem a mim.

(Solano Lucena)

Um dia, um reino

Era uma vez um princeso, n’um reino distante, que aguardava a chegada de sua principesa n'um pônei cor-de-rosa. Aguardava, aguardava e aguardava. No alto da torre. Adormecido. Lua, sol, lua e chuva.

Cultivava longas tranças. Cantarolava para os pássaros de manhã. Mas um dia soube de uma carta. Bruxas? Missões? Esperança? Sim. Faria a Guerra do Vietnã.

Ao término desta, cabelos curtos. Cara de homem. Medalha de herói. Bonita. Reluzente. E todo conforto de final feliz, de moral da história, era. Era somente uma impressão sua.

(Solano Lucena)

Margarida de Plástico

Margarida de plástico no centro da sala
Me lembra o teu cabelo
(a flor que não havia)
Percorria teu corpo
E se atirava ao chão
De lá, brotava natureza
E eu, de pouca beleza
Nascia junto
Joelhos juntos
Mãozinhas juntas
Olhos casados a te adornar.

(Solano Lucena)

Ateu

Poesia? Teu Bob Esponja que me abana da janela do carro? Teu melhor amigo que tá sempre nos lugares onde eu vou? Teu cheiro que me lembra uma tia-avó de São Francisco de Paula? Teu beijo que me morde todo? Teu cabelo que me irrita? Teu joelho que dá dó de ver? Teu nome que não rima com nada legal? Teus verbos que não sabem ser conjugados? Tua agenda que é cheia de citações minhas? Tuas idéias que não saem do lugar? Teu esforço que é comovente... Deus... Te escrevo um dia uma poesia.

(Solano Lucena)